Lançamentos de Jason e Charles Burns trazem o filé da HQ alternativa
Big Baby e Eu Matei Adolf Hitler estão entre as melhores narrativas do gênero
atualizado
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Costuma-se dizer que o quadrinho alternativo ou indie nasceu da implementação do chamado marketing direto nas relações de consumo de HQs nos EUA no final dos anos 1970. A venda com desconto, nas comic book shops, dos gibis que não mais precisariam retornar às editoras fez com que surgissem, nas décadas posteriores, milhares de lojas de quadrinhos. Após a pressão de leitores, varejistas e até de artistas da indústria (como Neil Adams e Roy Thomas) que queriam garantir seus direitos, os lojistas podiam comprar o excedente das tiragens, vender em longo prazo e adquirir os volumes de acordo com a demanda. Isso mudou tudo.
Como? Sem precisar arcar com o custo dos retornos, lojas e editoras se uniram para trazer à tona coisas mais ousadas. A margem de segurança fez que com surgisse gente interessada em lançar autores que se autopublicavam, muitas vezes com tom confessional e autobiográfico, inspirados ou nas artes plásticas ou nos comix undergroud (de Crumb e cia.) – os quadrinhos transgressores dos anos 1960. A partir dessa mudança de paradigma no mercado, coisas revolucionárias como Love and Rockets, Maus, Elf Quest e Cerebus puderam ver a luz do dia. Foi, de certa forma, um renascimento para o romance gráfico e para o quadrinho autoral moderno.
Os dois autores que vou recomendar a seguir são, de certa maneira, parte e filhotes desse processo. Charles Burns publicou as histórias de Big Baby (algumas em tiras) entre 1983 e 1991, inclusive na revista Raw, a meca do quadrinho alternativo nos anos 1980. Como podemos ver aqui, ele cresceria a ponto de se tornar uma lenda das HQs.
Já o norueguês Jason viu sua carreira internacional se intensificar a partir do final dos anos 1990, mas foi com seus trabalhos dos anos 2000 (romances gráficos minimalistas e pungentes como o diabo) que ele acumulou todo tipo de prêmio mundial importante sobre HQs. Sua linguagem descende diretamente daquele movimento iniciado com o marketing direto.
Bebezão
Publicado pela editora Darkside, Big Baby traz os primeiros trabalhos de sucesso publicados por Charles Burns. Essas histórias, por mais que não atinjam a maturidade narrativa e a densidade psíquica de Black Hole ou Sem Volta, já nos dão uma prévia da mentalidade distinta do autor para abordar certas camadas incognoscíveis e pontos cegos da psicologia dos seus personagens.
Aficionado por filmes de terror produzidos por Val Lewton, por cinema mudo caligarista, Twilight Zone e quadrinhos da EC Comics, o autor fez dessas curtas histórias com o “Bebezão” um laboratório para uma visão antípoda do mundo. Estão lá as obsessões que mais tarde se tornariam marca registrada do repertório e do vocabulário visual de Burns: a incômoda associação entre monstruosidade e sexo; a forte carga de metalinguagem, quando vemos histórias de terror sendo assistidas/lidas pelos personagens; a aproximação com o universo do “estranho” (no sentido de Todorov) e do terror, sempre no limite entre a representação e a realidade; o mundo dos pesadelos como fonte de emulsões psicológicas profundas; e, é claro, o ataque à classe média de subúrbios ricos norte-americanos.
Big Baby mostra, no sombreamento expressionista quase caricatural do artista, as “desventuras” do personagem-título, um garoto obcecado por histórias insólitas, de susto barato, tão imerso nesses temas que passa a visualizar abominações no quintal do vizinho e fantasmas de crianças mortas num acampamento de verão. Burns prefere deixar difusa a fronteira entre a imaginação do estranho garoto e os acontecimentos reais da diegese, justamente para nos situarmos, 100% do tempo, nesse limbo febril que contém o horror da imaginação e o horror da vida diária. O quadrinho traz um Charles Burns não lapidado e raiz, mas que já jorrava força expressiva e sentimentos desconfortáveis.
Hitler em uma comédia romântica
Diferentemente do caráter, digamos, lyncheano dos quadrinhos de Charles Burns, a pegada de Jason está mais para, eu diria, uma mistura de Tintim com Edward Hopper, o pintor americano da vida moderna. Eu Matei Adolf Hitler é o segundo lançamento do autor pela Editora Mino. No primeiro, Sshhhh!, de histórias totalmente silenciosas, ele já revelava o quão preciso poderia ser o seu minimalismo para representar afecções humanas agudas. Já neste romance gráfico publicado originalmente em 2006, ele usa a premissa de um assassino de aluguel (que viaja no tempo para matar Hitler) como trama primária que esconde, pessimisticamente, a falência das relações humanas e a completa ausência de valor para a vida no mundo moderno.
Há algo nos quadrinhos de Jason que eu, confessadamente, não consigo explicar. Podem ser os olhares de seus personagens antropomórficos, as relações emotivas que ele constrói entre os quadros, como se criasse silogismos visuais, ou até a capacidade de nos arrebatar emocionalmente com seus temas. Há, realmente, um coeficiente magistral em suas obras, que são ridiculamente simples em termos de layout e paginação, como se você pudesse extrair Shakespeare da linguagem da Turma da Mônica. Ao longo dos anos, ele foi transformando seus quadrinhos em bonsais, aparando seus recursos ao mínimo e a significação ao máximo, como se esculpisse o próprio silêncio.
Para além disso, Eu Matei Adolf Hitler é ainda uma tocante (e divertida) história sobre envelhecimento e a natureza ambígua do amor, tudo em meio a paradoxos temporais de viagem no tempo e temas de filme noir vagabundo. Como ele consegue fazer tudo isso? Creio que a explicação vai além das possibilidades da crítica. O que recomendo é ir, o mais rápido possível, atrás desse gibizinho que pode ser lido em 30 minutos, mas que te derruba como se fosse a própria Divina Comédia.