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HQ psicodélica Roly Poly peca por não ter substância

Apesar das páginas cheias de microdetalhes, o enredo parece mera justificativa para a criação de pirotecnias gráficas

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Existe um filme o qual eu seguramente considero o pior já feito (ao menos o pior que já vi). Trata-se do indecentemente ridículo e vulgar Sucker Punch – Mundo Surreal (2011), do famigerado Zack Snyder. Sério. Faz Batman vs Superman parecer Cidadão Kane.

Para você que nunca teve contato com essa “obra” de intergaláctica mediocridade, eis um resumo: uma garota internada num hospital psiquiátrico entra numa espécie de mundo de fantasia, como válvula de escape. Esse mundo funciona como fases de videogame, e, no final, tudo era uma programação para entreter velhos tarados.

O que torna Sucker Punch medonho não é sua produção, cheia de efeitos especiais de mau gosto, ou seu enredo, saído da mente de aluno de quinta série (Zack Snyder), mas, sim, o fato de ele deliberadamente renegar o cinema em si. Trata-se de um filme que, pensando estar se situando numa narrativa crossmedia e ultrapassando a fronteira do suporte cinematográfico (e caminhando em direção aos games), consegue ser uma bomba ofensiva para as duas formas de expressão.

Sucker Punch assume que renega o dispositivo e os modelos narrativos do cinema (não para entrar numa aventura “desnarrativa” e experimental, é claro) e transforma um filme de aventura numa sequência exibicionista (e perigosamente fetichista) de porrada estilo beat ’em up dos videogames clássicos, sendo cada “fase” uma dose cavalar de péssimo CGI e sofrível direção de arte. Verdadeiro projeto de esvaziar a sétima arte de conteúdo para transformá-la num mero showzinho modular que dialoga com mídias com outro propósito.

Ser comparado a Sucker Punch é uma referência odiosa para qualquer quadrinho, mas, no caso deste, Roly Poly – A História de Phanta (lançado simultaneamente pela Mino, no Brasil, e pela Fantagraphics, nos EUA), cabe uma contextualização: o animador e quadrinista Daniel Semanas parece ter uma consciência maior de que seu trabalho é um orgasmo gráfico em psicodelia neon, e pouco mais.

Aqui, cola o prazer desinteressado numa história boba, mas que elabora sequências avassaladoras de briga bem desenhada e coolness de origem suspeita. Tipo Geof Darrow: algo proibitivo no cinema, mas talvez desejável nos quadrinhos. A diferença principal é que o cinismo, encontrado em Zack Snyder, parece estar ausente em Daniel.

Roly Poly se passa numa Neo-Seul (Akira, hmm-hum) em 2024 e segue uma, digamos, personagem pós-millennial de atitude “radical” que se envolve numa aventura rasteira cheia de ação, redes sociais, drogas, bichos fofinhos e toneladas de referências pop: de manwha e k-pop ao Frank Miller de DK 2. De Mark Schultz até Chris Ware. Além de, claro, videogames por toda parte. Arcade, de preferência. Vaporwave, saca?

Daniel Semanas é um narrador habilidoso. Sabe dar vertigem a longas cenas de porrada. Sabe integrar os golpes combinados de games às sequências em quadrinhos. Suas páginas multicoloridas são excitantes, quase epilépticas, cheias de microdetalhes. Elas processam bem a sombra de Katsuhiro Otomo e Taiyo Matsumoto. Uma HQ que tem tanta beleza e recursos gráficos não poderia ser comparada a Sucker Punch. Será?

Como se pode ver, Roly Poly é cheio de qualidades. Porém, fica uma pulga atrás da orelha. Seu enredo (basicamente algumas sacadas underground meio clichês, uma longa viagem de drogas e uma aproximação pueril com a “economia dos likes”) parece mera justificativa para a criação de pirotecnias gráficas. Há os que defendem os quadrinhos como art books, mas eu, talvez antiquado, ainda prefiro alguma substância no que cabe àquilo conhecido como narrativa.

Os games são uma forma de expressão que têm suas próprias contingências. Dependem da participação ativa do jogador/espectador. A onda está no controle da situação e do risco. Minha teoria é que o game deve se misturar ao quadrinho com certa parcimônia. A atitude “fictivizante” de ambos não é a mesma. Sem o controle e o risco dos games, o quadrinho-jogo pode parecer uma experiência tediosa, sem a projeção-identificação que o leitor tão devotamente encontra na sua forma de arte favorita. Nesse sentido, Roly Poly parece ter nascido já como um cartucho velho que não serve mais em nenhum console.

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