metropoles.com

História em quadrinhos sueca promove desconstrução da vagina

A obra de Liv Strömquist tem inspiração no clássico quadro de Gustave Courbet

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
a_origem_do_mundo_metropoles_capa_banner
1 de 1 a_origem_do_mundo_metropoles_capa_banner - Foto: null

A famosa tela A Origem do Mundo, do polêmico pintor francês novecentista Gustave Courbet, é a inspiração (não sem grossa camada de ironia) para a história em quadrinhos documental/teórica de mesmo título da artista sueca Liv Strömquist, que acaba de sair no Brasil pela Companhia das Letras.

Talvez o nome não seja associado à imagem imediatamente por todos, mas trata-se daquela tela muito famosa, exposta no Musée d’Orsay em Paris, que mostra a vulva de uma modelo deitada em primeiro plano. Uma imagem impressionante tanto por sua qualidade técnica quanto pelo imaginário cultural evocado.

Reprodução
Quadro A Origem, de Courbet

 

A própria trajetória desse quadro nos permite fazer uma associação com o que pretende a quadrinista sueca com seu A Origem do Mundo – Uma História Cultural da Vagina ou a Vulva vs. o Patriarcado. Conhecida a fama de contraventor de Courbet (um pintor muito plural), a tela foi encomendada por um diplomata, com pretensões de arte erótica. Ela acabou tendo outros donos, sempre sendo mantida escondida atrás de outras pinturas, e chegou a ser confiscada pelo exército soviético durante a Segunda Guerra Mundial.

Um de seus donos foi o famoso e imensamente influente psicanalista Jacques Lacan, que, a despeito de suas intensas inflexões sobre a natureza matemática do inconsciente, também mantinha o quadro escondido em sua casa. A Origem do Mundo (de Courbet) é uma imagem estranhamente hipnótica, certamente carregada de erotismo, como espécie de vórtice, capaz de ultrapassar a mera crueza insípida da pornografia. Há uma poderosa força instigadora ao seu redor, e isso certamente se dá também pelo nevoeiro de desinformação existente em torno do órgão genital feminino. O quadro só veio a ser exposto publicamente em 1995, inacreditavelmente.

O quadrinho de Strömquist, lançado originalmente em 2014, é deliciosamente sarcástico, mas também instrutivo e bem pesquisado. A forma do relato mistura um tanto de Harvey Pekar aqui (na autorrepresentação da autora, falando diretamente com o leitor) com um Scott McCloud ali (no uso pedagógico/acadêmico da linguagem das HQs, ainda que excessivamente textual). Cartazes, ilustrações antigas, fotos e prints também ajudam a compor o aspecto visual da HQ.

O traço da autora é simples, plano e um tanto propositadamente naïve, porém muito bem coadunado com o uso da tipografia. É uma forma eficiente de acomodar o vasto volume de conhecimento histórico, antropológico e cultural que ela investiga para defender sua completa desconstrução a respeito do que se pensa sobre a vagina. Além de ser uma das quadrinistas mais reconhecidas da Suécia, Strömquist é também cientista política.

A autora começa com um questionamento instigante: por que a genitália feminina é constantemente reduzida somente à vagina (que é apenas o orifício que liga as partes interna e externa da vulva)? Seria uma tentativa secular de simplificar as diversas partes do órgão sexual feminino e promover a sua invisibilidade? Um de seus argumentos mais pungentes é pegar as imagens dos humanos enviadas pela sonda Pioneer da NASA em 1972 com o intuito de informar civilizações alienígenas e notar que o desenho representando a mulher não possui genitália, e sim apenas uma espécie de espaço em branco.

4 imagens
1 de 4

Reprodução
2 de 4

Reprodução
3 de 4

Reprodução
4 de 4

 

A investigação prossegue procurando revisitar o histórico da visão (científica e cultural) sobre a vagina (sempre sancionada por homens), considerando, em tempos seculares, que a mulher seria um “homem incompleto” (dada a uma errada interpretação da anatomia feminina) ou que, no puritano século 19, a mulher e o homem seriam pautados apenas por diferenças, sendo a mulher pouco motivada sexualmente e o homem “vítima de seus instintos”.

A mensagem é clara: a tentativa de invisibilizar a vagina é a mesma de podar a autonomia sexual feminina, e logo o sujeito feminino como um todo. Como dizem clichês de psicanálise, a mulher seria motivada por certa “inveja do pênis”, ou ela sequer existiria enquanto linguagem do inconsciente. O discurso da autora não coloca o desaparecimento da vulva apenas como parte de um erro cultural/científico, mas também de uma doutrinação ideológica.

O próprio Freud é um dos que mais toma bordoadas de Strömquist, mas sobra também para outros pensadores célebres, como Sartre e Santo Agostinho. Eventualmente, a autora recai sobre certo anacronismo ao querer analisar pensamentos pré-científicos ou pseudo-científicos à luz da nossa ética e conhecimento atuais, mas a argumentação é sistemática, persistente e provocativa.

Logo são examinados a tomada de posição do clitóris, a masturbação e o tabu da menstruação, sempre com bem-vinda agressividade na dicção, humor incisivo e uma capacidade crítica que pode promover uma revolução interna num leitor incauto. Assim como no quadro de Courbet, a ideia de associar a vagina à “origem do mundo” incita uma significação profunda, como se a autonomia da sexualidade feminina fosse o elefante na sala de nossa sociedade.

Reprodução

 

Strömquist demonstra que sociedades arcaicas, em sua maioria paleolíticas, depositavam outro olhar sobre a vulva, que era central para seus imaginários culturais, associados à espiritualidade, fertilidade e, é claro, ao nascimento humano. Isso é algo que nossa cultura paradoxalmente prefere esquecer, talvez porque para o mundo masculino simplesmente não seja interessante associar a origem do mundo à sexualidade feminina. Não surpreende, portanto, que o quadro de Courbet ainda cause escândalo. Mas esta HQ sueca está aí para criar um novo vórtice.

Quais assuntos você deseja receber?

Ícone de sino para notificações

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

Ícone de ajustes do navegador

Mais opções no Google Chrome

2.

Ícone de configurações

Configurações

3.

Configurações do site

4.

Ícone de sino para notificações

Notificações

5.

Ícone de alternância ligado para notificações

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comNotícias Gerais

Você quer ficar por dentro das notícias mais importantes e receber notificações em tempo real?