“Game of Thrones”: o taoísmo do gelo e do fogo
Na reta final, o aspecto mítico da série está mais forte que nunca
atualizado
Compartilhar notícia
Após o fim da sétima temporada da mais amada série da atualidade, restou em boa parte da audiência um sentimento de estupor e ambiguidade. É inevitável a sensação de que “Game of Thrones” foi domesticada. Os roteiristas estão jogando para a torcida? O seriado perdeu sua criteriosa verossimilhança.
Além disso, a série claramente optou por manter o núcleo de seus personagens mais populares, agora imortais, para que todos tenham o devido final que merecem (pro bem ou pro mal) de acordo com julgamentos morais, e não com desdobramentos plausíveis da trama (como a série costumava ser). É a vitória de quem “shippou” Jon Snow e “Dany”. Virou “Senhor dos Anéis” de vez.
Apesar disso, a sequência do dragão de gelo pondo a muralha abaixo, com todo o seu requinte em CGI e sombria dramaticidade, me despertou algo afetivo em relação a “GoT”, e uma vontade de escrever algo que redima o legado da série. Em 2011, logo após a primeira temporada, escrevi um elogio comparando-a à HQ brasileira “Leão Negro” (procurem!): o entrelaçamento complexo de intrigas políticas, os sofisticados laços familiares e o jeito implacável com que lidava com as mortes fariam do seriado um produto novo, um passo adiante na evolução das obras do gênero de fantasia.
O fogo fátuo cintilante e demolidor de muralhas saindo da boca do Viserion zumbi, no entanto, me lembrou que esta obra não é apenas “um jogo de tronos”, mas também “uma canção de gelo e fogo”. O engrandecimento na participação de dragões e white walkers na sétima temporada comprovou que, para além de intrigas, conspirações e relações humanas degeneradas, “GoT” é também uma narrativa mítica. Ou seja: está ligada a conhecimentos arquetípicos e saberes do inconsciente coletivo.
Um destes princípios universais/arquetípicos é o Tao chinês, algo muito complexo para ser pensado por aqui. Trata-se de uma força motriz, um princípio de vida e morte (yang e yin) que atravessa, rege e se imiscui em todas as coisas. Na definição do filósofo francês Romain Graziani: “É um princípio impessoal, invisível, onipresente, que gera, alimenta, transforma e destrói o conjunto das realidades, sem seguir plano nem intenção”.
A ideia aqui não é comparar o gelo (white walkers, o inverno) com o yin noturno e o fogo (dragões, deus do fogo) com o yang diurno, e, sim, fazer associações um pouco menos duais. Os white walkers, segundo este princípio taoísta, não são maus. São apenas uma força cega alicerçada tão-somente num princípio motor de destruição. Um ímpeto de esfacelamento, de finitude, de encerramento. A “longa noite” (na mitologia de “GoT”, um desolado mundo consumido pelo gelo e dominado pelos caminhantes brancos) seria como uma inevitável morte “térmica” do nosso universo pelo resfriamento e posterior apagamento das estrelas.
O que seria isso? Quando o hidrogênio de todas as estrelas for consumido (em bilhões e bilhões de anos), e as estrelas maiores forem progressivamente dando lugar às estrelas menores, até sobrarem apenas anãs vermelhas, o universo estará à beira de seu colapso frio. Quando a última delas esgotar sua carga de hidrogênio, ficaremos para sempre totalmente no escuro. Uma noite eterna.
A contrapartida do fogo em GoT também carrega sua simbologia, pois está ligada à única religião monoteísta da série. O “deus vermelho” reverenciado por Melisandre, Thoros e Beric, como numa espécie de judaísmo primitivo, esconde suas intenções, não dita dogmas ou promete recompensas. A ação desse deus ocorre por meio de visões e rituais mágicos, e seus súditos o seguem por simples dever, pela simples natureza inexorável da fé. Os dragões e o clã dos Targaryen certamente estão ligados ao lado luminescente, mas igualmente cego e vazio, do princípio taoísta em “GoT”. Jon Snow, como sabemos, é um Targaryen, e é provavelmente por isso que ele pôde ser ressuscitado por Melisandre.
É certamente uma pena que a sétima temporada da série tenha sido dominada por um canhestro maniqueísmo (até mesmo Jaime escolhe o lado dos justos) e seus heróis tenham se voltado ao estereótipo do romance de cavalaria medieval. Se a neutralidade e a sofisticação do taoísmo (mesmo que não intencionalmente) proposto por George R.R. Martin para sua saga tivesse se mantido, talvez víssemos menos moralismo e mais arrebatamentos cegos, motivados por conhecimento ancestral e narrativas míticas. Há pouco o que esperar da oitava temporada (que deve ter final hollywoodiano), mas valia lembrar o rico arcabouço mítico que fez do seriado um dos melhores de todos os tempos.
Nota:
Acontece, na próxima segunda-feira (4/9), a segunda edição do evento “EnQuadrinhos”, no Teatro da Caixa Cultural. Trata-se do maior evento acadêmico voltado à nona arte de Brasília, e vai trazer uma exposição de pôsteres contemplando pesquisas do Brasil inteiro, novas e urgentes, sobre o assunto. Além disso, teremos palestras com o quadrinista e ilustrador Gustavo Duarte (de “Monstros”), com a Profa. Dra. pela UnB Selma Oliveira, pioneira nos estudos de quadrinhos no DF, assim como um bate-papo com o histórico artista Jô Oliveira, homenageado pelo evento. Como se isso tudo já não bastasse, teremos também uma oficina de narrativas gráficas sem texto com Gustavo Duarte e uma feira de publicações. É motivo o suficiente para dar um rolê por lá.