Edição colossal da Mythos retoma o legado de Conan, o Bárbaro
A mitologia em torno do herói influenciou produtos como “Game of Thrones” e “O Senhor dos Anéis”
atualizado
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“Eles golpeavam com a fúria devastadora de um furacão que assola uma moita de arbustos. Nem mesmo os três tlazitlanos juntos eram páreo para Conan que, apesar do tamanho, era mais rápido que qualquer um deles. Movimentava-se na luta com a destruidora segurança de um lobo cinzento, deixando cadáveres em seu rastro”.
Este é um trecho da novela “Pregos Vermelhos”, que o escritor americano Robert E. Howard publicou em 1934, como uma das últimas aparições do hoje lendário bárbaro da Ciméria. Howard era um autor de “pulps” (literatura barata de banca, de ficção-científica, terror, faroeste, etc.), muito populares nos anos 1920 e 1930, mas escrevia com agilidade e segurança, criando histórias que são difíceis de parar de ler.
O Conan de Howard vivia em um mundo minuciosamente planejado por seu autor, a “Era Hiboriana”, espécie de “história antes da pré-história”, onde ele pôde misturar ambições e influências de seu fascínio pelos diferentes períodos da humanidade. Reinos, cidades e costumes da Era Hiboriana remetem a distintas geografias e períodos do nosso mundo.
Conan vem de um ambiente barbárico que remete aos povos celtas da Grã-Bretanha antes da invasão dos romanos. Ficou famoso em nível colossal ao ser interpretado no cinema em 1982 por ninguém menos que Arnold Schwarzenegger, auge da “conanmania”.
Volto a Conan porque recentemente adquiri um volume lançado pela Editora Mythos no final de 2016, “Conan: o Libertador”, um catatau em formato gigante, capa dura e adornos dourados, com 500 páginas, que compila as principais histórias do bárbaro na Marvel Comics (dos anos 1970 aos 1990), colocando em ordem os eventos que antecedem a sua conquista do trono da Aquilônia.
Esse lançamento é importante porque nos permite refletir minimamente sobre o legado do personagem, sua trajetória na cultura pop, sua incalculável influência.
Afinal, o que imaginamos quando pensamos em Conan? Fácil: um bárbaro de cabelos longos, lisos e escuros, pele bronzeada, muito musculoso, coberto de sangue e com pilhas de cadáveres aos seus pés (além de algumas mulheres seminuas), conforme as capas de seus livros ilustradas por Frank Frazetta, nos quadrinhos desenhados por John Buscema e até nas capas de discos da banda de metal Manowar.
Conan: uma fria máquina de matar capaz de topar qualquer negócio. Ladrão, pirata, soldado. Um anti-herói com uma trajetória de redenção, da selvageria mais pura da Ciméria até a coroa da Aquilônia, ápice da civilização Hiboriana.
O conflito patente entre civilização e barbárie está inscrito na literatura howardiana. Complexo e pessimista, o autor de Conan tinha uma visão crítica do conservadorismo de seu estado natal, o Texas. Para Howard, como num simples jogo de entropia, o ser humano tendia à barbárie, seu estado civilizatório “natural”. As cidades e os impérios seriam, então, nada mais que o próprio caos travestido de modos pseudo-racionais. Era este o teor das cartas trocadas com outro escritor de pulps, o mestre do horror metafísico H.P. Lovecraft.
Brutal, inclemente, sóbrio e cínico, Conan é um personagem improvável para os padrões de hoje. Ele continua sendo publicado pela editora Dark Horse, mas com o sexismo e a violência atenuados. Associado a uma masculinidade de idealizada virilidade, a testosterona de Conan e a implacável virulência de seu mundo (com guerras intermináveis, monstros demoníacos e selvagens psicopáticos) parecem politicamente incorretas para o “leitor sensível” de hoje.
Porém, o perturbador mundo de Conan (com seres das trevas macabros e degenerados, influenciados por Lovecraft) reflete muito da angústia de seu autor, que perdia cada vez mais leitores na escalada da Grande Depressão nos anos 1930. Diante da morte da mãe (com quem nutria uma relação edipiana), Howard se matou com um tiro na cabeça, aos 30 anos.
Em 1970, o roteirista da Marvel Roy Thomas (e que se tornaria editor em 1971) convenceu Stan Lee a comprar os direitos de adaptação de Conan para os quadrinhos. Nasceu aí uma segunda etapa da vida cultural do personagem, com os clássicos desenhos do britânico Barry Windsor-Smith. Essas histórias, porém, obedeciam ao código de censura das HQs, e continham menos sexualidade e violência.
Em 1974, a Marvel lança uma versão “para adultos”, “A Espada Selvagem de Conan”, um clássico publicado por décadas que adaptou quase todos os contos de Howard (e também de seus seguidores, como o polêmico Sprague de Camp). Primorosas, essas versões, quase sempre escritas por Thomas e ilustradas no lápis sólido de John Buscema, estão entre o melhor que a Marvel já publicou em toda a sua existência.
E é parte desse material que está presente nesta “Conan: o Libertador”. Logo na primeira história temos a adaptação de um dos mais maduros contos de Howard, “Além do Rio Negro”, uma trama ao mesmo tempo política e sobrenatural em uma região fronteiriça. Nem tudo aqui segue o mesmo primor. Há artistas medíocres (como M.C. Wyman) e outros subaproveitados (como o grande Gil Kane), mas os roteiros de Thomas registram com deferência a marca de Howard.
Publicadas originalmente na forma de literatura dos anos 1930, estas histórias de Conan influenciaram praticamente tudo o que veio depois dentro da ideia de “espada e feitiçaria”, de “O Senhor dos Anéis” a (especialmente) “Game of Thrones”. Não é pouco para uma invenção destinada a ser esquecida em poucos anos, como ocorreu com 99% dos pulps.