Brian K. Vaughan, de Paper Girls, é o melhor roteirista de sua geração
Primeiro volume da HQ saiu no Brasil em 2017. Autor também assina as séries Y: O Último Homem e Saga
atualizado
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Um grupo de quatro garotas de 12 anos que curtem andar de bicicleta num subúrbio americano nos anos 1980 é envolvido por uma misteriosa trama com monstros, elementos de ficção científica e viagens no tempo. Parece algo familiar? Não, não estou falando de Stranger Things ou Dark (coisas da Netflix), mas sim de Paper Girls, série em quadrinhos escrita pelo brilhante Brian K. Vaughan e cujo primeiro volume foi lançado no Brasil pela Devir em 2017.
Escrevo sobre este assunto não apenas para chamar a atenção para a qualidade excepcional dessa publicação (que tem também grande parte do mérito nas atraentes ilustrações monocromáticas de Cliff Chiang), mas sobretudo para o seu roteirista, p qual vem acumulando, ao longo da última década, uma coleção de obras muito originais e potentes, dando graça e um colorido especial ao árido mundo dos comics americanos contemporâneos.Vaughan também não é novato na televisão (onde foi premiado por ter desenvolvido roteiros para as temporadas mais legais de Lost), e atua na indústria americana de quadrinhos desde os anos 1990. Porém, é em seu trabalho autoral mais recente, como as séries Y: O Último Homem (pelo selo Vertigo, da DC) e Saga (pela Image Comics), que Vaughan ficou calejado para escrever arcos sólidos de aventura, reviravoltas intensas nas tramas e personagens cheios de nuances e problemas modernos.
Paper Girls, seu quadrinho mais recente, traz a história de uma entregadora de jornal novata (Erin), que, no primeiro dia de trabalho, encontra outras três garotas no mesmo ofício. Aquela madrugada (entregadoras de jornal acordam cedo, oras!), porém, nunca termina definitivamente, porque um evento envolvendo viajantes do futuro, duplicatas delas mesmas, dinossauros, tardígrados (ou ursos-d’água, the next big thing) e a Apple (!) interrompe suas linhas temporais até que já não saibam em que momento do tempo se encontram.
A história ganha densidade psicológica quando uma versão adulta de Erin se encontra com sua contraparte mirim, e um doloroso conflito geracional se apresenta. A narrativa de Paper Girls nada tem de virtuosa ou metalinguística. Vaughan não é Alan Moore. Mesmo assim, a humanidade eletrizante, sufocante, está em cada linha de seus escritos. A arte de Chiang talvez seja também a mais autoral com a qual ele já tenha trabalhado (rivalizando com a beleza neoclássica que Fiona Staples imprime em Saga).
Dito isso, listei quatro razões para considerarmos Brian K. Vaughan o melhor roteirista de comics americanos de sua geração:
1 – Descende dos melhores
É fácil achar o DNA da escrita de Vaughan. Ele reside principalmente na escrita densa, neurótica e filosófica dos autores da “invasão britânica” que transformou os quadrinhos americanos, a partir do início dos anos 1980, de algo insípido e desgastado em algo de fôlego novo, inédito e instigante.
Vemos, por exemplo, a marca da fantasia de Neil Gaiman no brilhante Saga, que ostenta um cenário rico, cheio de possibilidades e alojamentos narrativos interessantes para os seus personagens. Na história de super-heróis política Ex-Machina, encontramos reminiscências de Alan Moore e Grant Morrison. Em Paper Girls, o ordinário se une ao fantástico como em Shade, o Homem Mutável, de Peter Milligan, e por aí vai.
Vaughan inspira-se, portanto, em uma tradição de autores exclusivamente roteiristas e os quais dedicaram suas carreiras para adensar o mundo dos quadrinhos de super-herói e de fantasia, provando que esses gêneros poderiam ter verdadeira qualidade literária.
2 – Dialoga com a contemporaneidade
Paper Girls pode ser pensado como um quadrinho feminista: não apenas porque coloca as mulheres em total evidência no protagonismo da história, mas também porque realoja o contexto de sua narrativa em padrões que são indisfarçáveis para os quadrinhos de hoje.
Isso quer dizer que Vaughan sabe inserir em suas histórias as novas tecnologias, as redes sociais, as gírias e os hábitos atuais, além das idiossincrasias dos millennials, sem parecer um velho tentando escrever sobre algo que não pertence à sua geração.
Em Paper Girls, ele vislumbra um futuro interessante para os descendentes dos nossos jovens de hoje, assim como para os gadgets que usamos e os hábitos cultuados por nós. Mais que exercícios de futurologia, Vaughan faz leituras sociais a partir das mídias e das relações culturais, e sabe dar visibilidade ao que precisa efetivamente ser visível no mundo de hoje.
3 – Sabe escrever personagens complexos
Quem leu Saga sabe: por mais que tenhamos um grandioso pano de fundo de fantasia e space opera, o verdadeiro encanto desse gibi são seus personagens cheios de vícios, incertezas e atitudes duvidosas. Em Y: O Último Homem, um plantel de ótimas mulheres expõe um contraste sólido com o
último homem na Terra, perdido em indagações de sua subjetividade.
Em Paper Girls, Vaughan procura mais uma vez dar delineamento e introvisões diferenciadas para as suas mulheres, sendo cada adolescente um arquétipo que evolui culturalmente dos anos 1980 até o futuro. Sua visão sobre a mente feminina, portanto, é orgânica e trabalha cada caráter individualmente, fugindo necessariamente de estereótipos e modelos que já não servem ao leitor contemporâneo. Na verdade, saber elaborar personagens que digam algo substancioso para esta geração é um grande desafio – o qual Vaughan aceita de peito aberto.
4 – É um autor humanista
Em Saga, fazemos a leitura em primeira pessoa de uma bebê alienígena que conta a história estilo Romeu e Julieta de seus pais em uma guerra intergaláctica. O que emociona não é apenas o olhar familiar, afetivo, entre pais e filha, mas cenas verdadeiras, como quando a mãe precisar fazê-la mamar enquanto foge de soldados sanguinários.
Paper Girls favorece essa relação parental, mas deslocando-a aos personagens olhando para seus próprios espelhos invertidos. Ex-Machina usa velhos tropos dos super-heróis no “mundo real” para perscrutar a fragilidade humana. E fragilidade, como bem sabemos, acompanha todo o trajeto de Y: O Último Homem.
Isso tudo não faz de Vaughan um pessimista, mas sim um autor que está lado a lado com o drama humano de cada um de seus personagens, vislumbrando sempre a utopia e baseando-se em ideais de igualdade. Sua escrita, portanto, descende de Voltaire, de Sartre, de autores que tinham um projeto em relação à humanidade. Poucos roteiristas de comics americanos arvoram-se nesses debates. Se isso não coloca Vaughan no panteão, eu não sei o que mais poderia colocá-lo.