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Blood, perturbadora história de vampiros, é republicada no Brasil

Com diversos questionamentos, considerados adultos nos anos 1980, a história faz emergir um imaginário de fantasia erótica

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Quando era um adolescente nos anos 1990 querendo entender até onde chegava a arte dos quadrinhos, duas obras assombravam o imaginário da garotada: Moonshadow (1985-87), a fantasia delirante e free style escrita por J.M. DeMatteis, e a minissérie Wolverine/Destrutor: Fusão (1988, com roteiros de Walt Simonson), que trazia um plot ambíguo e violento, atípico para HQs de super-heróis.

Em comum, essas séries, tornadas romances gráficos, tinham duas coisas: primeiro, foram lançadas pelo selo Epic, da Marvel, que não apenas dava liberdade autoral aos artistas, como também lhes garantia direitos autorais. Foi um dos fatores alavancadores, nos anos 1980, da transformação de um gênero tolo de gibis numa revolução em linguagem e simbolismo nos quadrinhos.

Em segundo lugar, essas eram HQs pintadas (em aquarela e outras técnicas mistas), de resultado deslumbrante, com embriagada influência expressionista. Cortesia dos artistas Jon J. Muth e Kent Williams, nunca superados por seguidores como Alex Ross e Esad Ribic.

A editora Pipoca e Nanquim resolveu fazer emergir esse imaginário de fantasia erótica e adulta da Epic republicando justamente um terceiro elo desses quadrinhos. Hoje, eles podem até parecer um pouco datados, mas talvez tenham algo a dizer sobre a consciência artística da nona arte na atualidade. Falo de Blood – Uma História de Sangue, com roteiro de DeMatteis e arte de Williams, uma intensa e mítica história ancestral de vampiros que não dava as caras no Brasil desde a publicação pela Abril em 1990.

 

DeMatteis é daqueles roteiristas pau-pra-toda-obra que já fez de tudo um pouco: das obras de vanguarda citadas nos anos 1980, à inesquecível e hilária Liga da Justiça Internacional, a um bom trabalho no Homem-Aranha com A Última Caçada de Kraven. Blood é uma obra de sua juventude, e tem como mérito a radicalidade experimental de sua narrativa, desimpedida e “automática” como um quadrinho de Moebius, além da arte ferina e venenosa de Williams.

Alguns podem torcer o nariz para um tom ainda meio derivativo new age (passando pro punk) de Blood. Os anos 1970 e 1980 produziram uma porção de filmes de vampiros assim (Vampyros Lesbos, Martin, Fome de Viver, Garotos Perdidos), e essa mitologia de sugadores de sangue vertidos em metáforas existenciais “complexas”, com doses de erotismo gore, rende bem até hoje (curto a narrativa do RPG Vampiro: A Máscara, de Mark Rein-Hagen).

 

Extraindo-se essa pátina de afetação que acaba entornando no gótico, Blood sobrevive límpida como trajetória mítica, antípoda, de um ser incapaz de reconhecer as fronteiras do tempo e do espaço. Suas transformações estão mais no nível emocional do que propriamente na mudança de estado ou ação. Há evocação do mito da caverna em Platão, assim como do Paraíso Perdido, em Milton.

A metáfora da eternidade para o vampiro é simbolizada na odisseia da alma humana, interminável e com profundezas que sempre avançam em escaladas maiores, desembocando no ouroboros da reincarnação. Os seres em Blood não obedecem a uma ordem espaço-temporal definida. Em um momento, estamos num pântano de danações perenes. Em outro, num deserto com três sobreviventes.

Posteriormente, somos arremessados ao mundo moderno. Sem arestas, sem fronteiras. DeMatteis declara, no prefácio, que a história o levou como um cavalo selvagem que precisa ser domado. É um dos mais translúcidos exemplos de como é possível carregar elementos de cultura pop (em uma história em quadrinhos) na linguagem poética.

 

As aquarelas de Williams, por fim, em seus tons quentes e pastéis, em sofisticado uso de cores, traduzem o impacto arraigado e atávico dos mitos. Em certos momentos, parecemos estar diante de pinturas rupestres de 30 mil anos. Em outros, num universo sci-fi de fantasia heroica, lembrando a herança de Flash Gordon, o próprio Moebius ou o semelhante artista Dave McKean. Williams nos mergulha num sonho de sangue, sexo e morte, cujo corolário só pode ser o sentimento do amor: pela vida, pelo poder, pelo outro.

Essa mistura de delírio, onirismo, fantasia new age e potência sexual é produto de uma estética considerada muito adulta nos anos 1980, e que se tornou um tanto quanto kitsch nos dias de hoje. Porém, vamos considerar que os quadrinhos atuais muitas vezes se resumem a paródias, narrativas autocomplacentes e politicamente corretas, além de aventuras imbecilizantes.

Williams mistura registros, impressões, flashbacks, pensamentos e sentimentos de um quadro a outro. A lascívia aqui é real, perturbadora. O sangue e a dor, vívidos, vertiginosos. A ambição destes artistas era outra. Alguns podem até achar de mau gosto, mas a lição em ressuscitar esses góticos dos anos 80 é justamente este gosto de sangue, revivido, experimentado como num ciclo eterno de nascimento e morte.

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