“Blade Runner 2049” é espelho da distopia do nosso próprio mundo
O longa de Dennis Villeneuve funciona como um filme de arquitetura da destruição em proporções colossais
atualizado
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O lendário quadrinista Frank Miller lançou, em 1990, junto ao artista Dave Gibbons, a minissérie “Liberdade”, em que descrevia um futuro próximo (a maior parte da ação se passa em 2010) absolutamente devastador, tanto moral quanto ecologicamente. Os autores procuraram pensar a completa degeneração dos Estados Unidos a partir da acentuação grotesca de eventos que já podiam ser percebidos nos anos 80.
Em “Liberdade”, o aquecimento global começa a provocar catástrofes naturais irreversíveis. Um presidente midiático e, ao mesmo tempo, despótico, militariza completamente a nação para segregar populações pobres e minoritárias. Símbolos de resistência e contracultura (como o “paz e amor”) são apropriados pelo establishment para fortalecer o exército. Os aliados sauditas dos EUA subitamente viram inimigos quando são incendiados seus poços de petróleo. O maior interesse da população está em softwares de pornografia. Há guerra contra fazendeiros fascistas por territórios e recursos na Amazônia. Neva em Los Angeles.
Na época, achei isso tudo um tanto caricato e um tremendo exagero. Olhando já para a distopia pós-Trump em que estamos vivendo, porém, vejo que o mundo de Miller parece assustadoramente real em 2017. E é justamente este o comentário que gostaria de fazer sobre “Blade Runner 2049”, filme de Dennis Villeneuve que estreia agora em cadeia nacional.
Assim como “Liberdade”, “Blade Runner – o Caçador de Androides” (o filme original de Ridley Scott, de 1982) tornou-se uma ficção científica retrofuturista. Ele se passa em 2019 (que está logo ali) e, por mais que nosso mundo esteja convivendo com sua própria forma de distopia, as coisas não aconteceram exatamente como o que ocorre na história do detetive Rick Deckard (Harrison Ford).
Baseado em um filosófico conto de Phillip K. Dick que trabalha a reflexão sobre a tomada de consciência existencial de seres artificiais, o “Blade Runner” original ilustrou esta fábula à “Pinóquio” num inigualável cenário cyberpunk em que a natureza entrou em colapso, as cidades são hiperpovoadas e precárias, as populações globais se misturaram, a violência urbana se generalizou e o mundo é controlado por corporações autocráticas. Fora isso, carros voando e tecnologia “cool”. O visual era um neon-noir que marcou época. Um filme intenso e ao mesmo tempo sóbrio, além de profundamente instigante.Mérito
“Blade Runner 2049”, por sua vez, sendo uma continuação direta do original (se passando 30 anos depois), também impressiona, mas em outro sentido. Com um roteiro mais pobre – que procura, um tanto desajeitadamente, repetir a problemática do original, que é a natureza da consciência humana –, menos noir e menos inflexões existencialistas, esta nova versão ganha força no caráter “Liberdade” da coisa. Explico: o maior mérito do filme está na fotografia do genial Roger Deakins, capaz de trazer vida (e morte) ao acachapante e desolador cenário pós-apocalíptico do filme.
Aqui, a humanidade se alimenta de proteína (vermes) cultivada em gargantuescas fazendas mecanizadas. As cidades não passam de imensos lixões e conurbações, com favelas maiores que as de Lagos (na Nigéria) no meio dos EUA. Marcas e corporações estão por toda parte em hologramas gigantescos que oprimem a miserável população. A sociedade parece irremediavelmente segmentada em castas e a segregação emerge a partir da diferença, incluindo aí a vida artificial. Neva em Los Angeles.
Villeneuve já demonstrou ser bom de direção. “Blade Runner 2049” tem pulso, ainda que lento e um tanto excessivo (são quase 3h de duração). A trilha de Hans Zimmer, Jóhann Jóhannsson e Benjamin Wallfisch cumpre seu papel em emular a genialidade de Vangelis, adicionando mais trevas à sinestesia do filme. E temos, é claro, um velho Harrison Ford lá, novamente meio trôpego (nunca o achei um grande ator), em papel parecido com o que fez em “Star Wars: Despertar da Força”.
Amarrações
A investigação policial do filme é sólida, e as amarrações com o original são bastante aceitáveis. Não impressionam, mas também não o tornam esquecíveis. O que incorpora novidade mesmo são as paisagens de Deakins, ilustrando com magnificência esse “brave new world” proposto como cenário para a intriga existencial dos replicantes. Se o original era “low-key” e claustrofóbico, este novo é uma sci-fi titânica, de paisagens arrebatadoras de demolição e apocalipse.
“Blade Runner 2049” funciona como um filme de arquitetura da destruição em proporções colossais. Seu cenário sobrepuja em muito os dilemas dos seus personagens. Se o original parecia muito distante da nossa realidade, já não tenho coragem de dizer o mesmo desta atualização. Lição aprendida com “Liberdade”. Parece um nefasto futuro para daqui a 30 ou 50 anos.
Quanto à “tomada de consciência existencial das máquinas” (e uma devida comparação com “Westworld”), fica para um próximo texto, porque “Blade Runner” vale mais que 10 centavos de opinião.