Bitch Planet é um quadrinho feminista necessário ao mundo atual
HQ sobre planeta prisão para mulheres injustiçadas é símbolo das lutas contemporâneas
atualizado
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Bitch Planet, série criada e escrita pela indomável Kelly Sue DeConnick, é o tema ideal para se pensar quadrinhos e representação feminina, uma semana após o Dia Internacional da Mulher. Não apenas porque se trata do trabalho de um coletivo quase todo feminino (composto também pela editora Lauren Sankovitch e pela colorista brasileira Cris Peter, fora o ilustrador Valentine De Landro), mas por ser deliberada e declaradamente feminista.
Essa é uma HQ que mira seu pensamento crítico direto no coração nas questões de gênero na atualidade. A roteirista DeConnick fez carreira ao dar uma abordagem arrojada e moderna à super-heroína Capitã Marvel, e Bitch Planet, publicado pela Image Comics desde 2014, tornou-se seu projeto pessoal e libelo autoral sobre a condição feminina.
Bitch Planet é uma HQ de ficção científica distópica, com tons de Frank Miller em Liberdade, porém menos niilista e mais francamente orientada a temas pontuais. Existe aqui um universo conceitual completo e cheio de reentrâncias. Quem disse que um quadrinho politizado não pode ser também um eletrizante thriller de ação?
Estamos num futuro indeterminado, mas não tão distante, em que uma distopia patriarcal se impõe política e militarmente. A principal autoridade do planeta é um homem conhecido como “Pai”, que lembra uma mistura de CEO de empresas dos anos 1950 com pastor evangélico dono de rede televisiva.
Há um difuso sistema de vigilância que envolve todos os cidadãos. Um “feed” de notícias substitui a TV, e a internet utiliza a própria população como agente de controle. A segregação, por gênero e raça, sai das sombras e se torna institucionalizada. Ecos da escritora Margaret Atwood estão por toda parte.
Mulheres “não-compatíveis” com isso são enviadas para um planeta à parte, o “posto auxiliar de conformidade”, conhecido à boca miúda como “bitch planet” (“planeta das putas”). Dentre os motivos desse exílio forçado, constam: “histeria”, “assassinato de feto”, “ninfomania”, “egoísmo”, “incitação política”, “obesidade” etc.
DeConnick deixa claro: esse sistema é o nosso mundo atual, apenas carregado de tintas influenciadas por filmes B, reality shows dos anos 1980 e muita cultura de apelação. Logo assimilamos a ideia de que as mulheres condenadas na fantasia do planeta prisão estão oprimidas aqui também, pelos mesmos motivos, mas em cárceres sem grade.
Até agora saíram dois volumes (lá fora) encadernados. Tive a oportunidade de ler o primeiro e mergulhar na arte sofisticada (não à toa, lembrando David Mazzucchelli e Dave Gibbons) do ilustrador De Landro, onde corpos são expostos em fortes detalhes que marcam a história das personagens.
Nem a nudez, tampouco o sexo e o erotismo, são gratuitos aqui. Há diversidade de cores, etnias e biotipos. Os corpos se tornam vetores das contradições políticas e éticas apontadas pelo gibi. Como antiga fã de filmes de “mulheres em prisões” (um tipo chauvinista de subgênero dos anos 1970), DeConnick resolveu transformar sua série autoral num exploitation reverso: as mulheres são badass, e seus corpos musculosos servem é para dar porrada e vencer competições esportivas bizarras.
Fica a pergunta: precisamos mesmo substituir o modelo deletério do “herói, burro e violento” por um equivalente feminino? Felizmente, Bitch Planet não está no mainstream e suas heroínas podem ser até raivosas e vingativas (com razão), mas não são nada estúpidas. DeConnick traça passado e motivações para suas personagens de maneira que suas individualidades costurem um panorama de onde reside a misoginia na atualidade.Como em qualquer visão hiperbólica de uma realidade existente, Bitch Planet também constrói caricaturas. Não consegui achar um homem de boa índole no quadrinho, e, se a mulher do passado precisava ser abrigar no estereótipo “doce, meiga e do lar”, parece que a representação contemporânea precisa carregá-la necessariamente de virilidade e agressividade.
E não deixa de ser divertido. Um quadrinho certo, numa hora urgente. Por que Bitch Planet ainda não chegou ao Brasil?