Antes da TV e do cinema, os “Smurfs” fizeram história nos quadrinhos
Os fofos personagens azuis representam uma importante tradição das HQs franco-belgas
atualizado
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Ainda está em cartaz em Brasília o desenho animado “Os Smurfs e a Vila Perdida” (dirigido por Kelly Asbury). Ao contrário dos dois filmes iniciais da nova franquia dos simpaticíssimos seres azuis (com live action – blargh!), aqui a ideia é praticar dois tipos de correções. Primeiro, voltar a um filme 100% de animação – multicolorida, quase “avataresca”, atraente na qualidade do 3D e na reconstrução do mundo mágico dos personagens. Legal.
Segundo, uma correção histórica: até então, a Smurfette era a única personagem feminina no “cast” dos gnomos belgas. A razão, ninguém nunca soube (Peyo era comunista? Peyo era machista? Peyo era louco?). Light e deliciosa, esta nova comédia dos Smurfs tem um adorável toque de empoderamento, com várias novas “smurfettes” e uma atualização de perspectiva no ainda atrasado patriarcalismo da série original.
Porém, vou aproveitar o ensejo não para falar mais sobre o filme, mas dos quadrinhos que originaram a saudosa e fascinante mitologia. Falei em Peyo, falei em gnomos belgas. Pois sim, os Smurfs são da Bélgica e se originaram nos anos 1950, seguindo uma forte tradição de quadrinhos no diminuto país das cervejas e dos chocolates (e das HQs!).
Peyo (abreviação – como é costume entre os francófonos – de Pierre Culliford) é o nome de seu criador (fala-se “peiô”). O sujeito é grande em seu país natal, espécie de Walt Disney da cultura franco-belga. Os Smurfs – na verdade Les Schtroumpfs – foram criados em 1958, numa participação especial para a enormemente famosa e importante revista infantil “Spirou”, na série de comédia medieval “Johann e Pirluit”.
“Schtroumpf”, literalmente, não significa nada. A “língua schtroumpf” (que consiste na repetição desta palavra para todos os verbos) surgiu na verdade como inocente piada entre Peyo e o genial cartunista André Franquin.
Os Schtroumpfs (fala-se “xtrumfs”) originais não eram nada como aprendemos no desenho animado da Hanna-Barbera dos anos 1980 (amáveis, dóceis, fofos – essa série foi supervisionada pelo próprio Peyo, que faleceu em 1992). Johann e Pirluit eram pajens medíocres de um hilário mundo medieval, e o irascível Pirluit (o escudeiro) utiliza uma flauta mágica (estilo Hamelin) para encantar animais e seres mágicos.
Isso os leva até um certo “país maldito”, onde eles encontram a famosa vila de cogumelos. Só que os Schtroumpfs originais, totalmente idênticos entre si, não possuíam as marcas de diferenciação que os dividia entre o “gênio”, o “robusto”, o “papai smurf”. Além disso, eram furiosos, irritáveis, endiabrados. De fato, talvez fosse melhor pensar esses seres como “diabretes”, não “gnomos”.Aos poucos, durante os anos 1950 e 1960, os Schtroumpfs foram ganhando popularidade e, obviamente, ostentaram também um título próprio na “Revista Spirou”, o que depois se converteu nos famosos álbuns com histórias completas em BD (bande dessinée: “quadrinhos” em francês).
A “Revista Spirou” (1938), junto com a “Revista Tintin”, é a mais tradicional publicação de quadrinhos da Bélgica, e a rivalidade entre as duas produziu uma notável competição por mais e melhores HQs durante esta era de ouro. Na “Spirou”, foram publicados, por exemplo, quadrinhos de personagens como Lucky Luke, Boule e Bill, Gil Jourdan e o próprio Spirou. Dentre os autores, mestres como Jijé, Morris, Franquin, etc. A publicação é também fundadora do chamado “groz-nez” (“nariz gordo”), um estilo caricatural e cômico que virou marca do quadrinho franco-belga, por exemplo, em “Asterix”.
O “groz-nez” rivaliza com o estilo de “linha clara” (mais fino, realista e delineado, sem hachuras e sombras), que foi disseminado pela rival “Revista Tintin”. Essa, aliás, também clássica, foi fundada em 1946 e igualmente introduziu uma leva inteira de pedras fundamentais dos quadrinhos franco-belgas, como Alix, Blake e Mortimer e o próprio Tintin, do genial Hergé.
Peyo, homem de negócios e visionário, parou de ilustrar os Schtroumpfs (e também seus outros personagens famosos, como Benoît Brisefer e o gatinho Poussy) no décimo-sexto álbum e passou apenas a gerenciar parques temáticos, desenhos animados, bonecos e todo tipo de merchandising. Porém, seus quadrinhos, bastante simples, mas bem estruturados narrativamente, com forte caráter em seus personagens e mirabolantes histórias (além do impecável traço “groz-nez”), sobrevivem.
Inclusive, se quiser começar a ler os Schtroumpfs, aqui vai o caminho das pedras: o melhor álbum é o “Smurf Astronauta” (1970), sexto da série, que conta com Peyo em perfeita forma artística e um inspirador roteiro co-escrito por Yves Delporte: um sonhador Schtroumpf quer chega às estrelas e constrói um módulo lunar que funciona apenas na sua fantasia.
Com pena dele, o Grande Schtroumpf (Papai Smurf) decide aplicar-lhe um sonífero e acordá-lo numa paisagem lunar, com os outros Schtroumpfs transformados em alienígenas para criar uma grande “mise-en-scène” e realizar o sonho do Astronauta. Uma linda parábola sobre o selvagem mundo da imaginação vindo da inspirada tradição franco-belga. Para um mundo que precisa cada vez mais de sonhos, cabe como uma luva.