Aniquilação remete a Tarkovsky, mas lembra mesmo é Predador
Produção Netflix estrelada por Natalie Portman revela fundo filosófico para mexer com público, mas não chega nem perto de clássicos sci-fi
atualizado
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Em 1979, o cineasta russo Andrei Tarkovsky lançou um marco no que podemos chamar de “ficção científica filosófica”. Stalker, um moroso e onírico filme repleto de imagens alegóricas e passagens poético-delirantes, partia do seguinte princípio: em um país fictício surgiu, sem que se saiba sua origem, uma certa “Zona” em quarentena onde as leis da física não funcionam. Uma vez lá dentro, as pessoas veem materializados seus desejos mais íntimos, suas indagações mais profundas.
Stalker, baseado em um romance dos alucinados irmãos Arkadiy e Boris Strugatskiy, situa-se no limiar daquilo que a ficção científica busca em seu primeiro imperativo: o contexto da ciência ou do alienígena como contraste e referencial para as mais humanas questões. Tarkovsky utilizava-se ambiciosamente de ideias nas quais uma das ambições dos aliens era se apossar da psiquê e da alma humanas, como se a criação de memórias e os desejos de cada um fossem ficções de inteligências superiores a nossa.
É assim, por exemplo, com o planeta que transmite emulsões psíquicas e realiza fantasias em Solaris. Em Stalker, um guia, um professor e um escritor (daí a presença do elemento filosófico e da ficção) aprofundam-se cada vez mais na Zona, em direção a um certo “quarto” que funciona como poço dos desejos e redime as almas torturadas que lá chegam.
Stalker é primoroso na construção de imagens desoladoras (devedoras do imaginário nuclear da época), figuras de linguagem enigmáticas e inflexões filosóficas que o tornam inesgotável. Tarkovsky é capaz de ir da ciência ao mito como se as duas coisas fossem facilmente intercambiáveis. É o aproveitamento de uma ideia muito simples que gerou um filme de requinte inigualável.
Faço este preâmbulo sobre uma ideia de sucesso para comentar uma produção também ambiciosa e de mote muito similar, mas cujo resultado vai numa direção completamente diferente. Trata-se, é claro, do falado Aniquilação, produção sci-fi da Netflix com o estúdio Paramount, dirigida pelo prolífico Alex Garland.
Conflito do humano diante do alienígena
Escritor inglês que ganhou proeminência nos anos 90, Garland tem pegada distópica e não leva muita fé em paraísos. Sua primeira manifestação de sucesso no cinema foi com a adaptação de seu romance A Praia, feita pelo também inglês Danny Boyle, com quem colaborou em outros sucessos, como o thriller espacial Sunshine e o filme de zumbis Extermínio. Em A Praia, Garland já plantava sua ideia recorrente de que a utopia é sempre maior que a humanidade, e que, diante dela, o único recurso da mente é enlouquecer.
Depois de estrear na direção com o elogiado e muito indagador Ex Machina, postulando a tragédia por meio da inteligência artificial, Garland volta à direção nesta gigante produção com Natalie Portman e Jennifer Jason Leigh, baseada em recente romance do americano Jeff VanderMeer. As semelhanças com Stalker são promissoras, mas as diferenças, por outro lado, parecem ser ainda maiores.
Vejamos: a bióloga Lena (Portman), convenientemente ex-militar e cientista brilhante, precisa adentrar numa certa “Área X”, na costa oeste americana, que foi tomada por uma substância de aspecto psicodélico e quase gelatinoso chamada “brilho”. Sua intenção é descobrir o que passou com seu marido Kane, que foi a única pessoa a retornar dessa região, mas mentalmente avariado.
Para acompanhá-la na missão, outras quatro mulheres – todas degeneradas pela vida por algum motivo e que não têm muito a perder, já que o risco é alto – entram com ela dentro do brilho. Lá, clichês de desorientação e perda de memória se misturam a uma curiosa e muito inventiva nova forma de evolução, baseada num princípio “cancerígeno” de reprodução e mutação tresloucada das “células” do brilho.
O resultado deste ecossistema inédito, e que no nosso mundo classificaríamos como uma “antivida”, é algo que se aproxima da hibridização extrema e replicação sem limites. A ideia, muito interessante, seria lindamente aproveitada em uma estética como a de Stalker. Porém, os dois filmes parecem fazer uma leitura deste princípio de maneira invertida.
Aniquilação pode ter um verniz filosófico, porém, sua estrutura narrativa e compleição de personagens não está muito longe de Predador. Cinco mulheres “duronas” enfrentam a selva “sobrenatural” e, ao final da trama, só uma poderá sobreviver. Quantas vezes vimos isso em filmes de ação infiltrados de ficção científica pulp? Trocar os brutamontes por mulheres não deixa de ser um recado certeiro. Afinal, o filme aposta na não óbvia tese de que a argúcia feminina se sairia melhor nestas ocasiões.
Porém, por mais que queira alcançar algum sentido na criação a partir da natureza da própria biologia, Aniquilação não dispensa diálogos didáticos e mal escritos, além de uma dramaturgia muito pobre que procura deixar o texto “redondo” (mal dos script doctors) para um “público Netflix” com direito a final aberto à la Garland. Neste sentido, estamos ainda na mesma seara que Schwarza e cia nos anos 80.
É claro que a comparação com Tarkovsky, reconhecidamente um dos maiores gênios da sétima arte, é um tanto injusta. Aniquilação não passa de um produto que procura elevar um pouco o QI do pop. Porém, não deixa de chamar a atenção a inversão de sentido, entre os dois filmes, no que diz respeito às suas prioridades.
O velho Tark dispensa sem constrangimento o detalhamento do enredo e da verossimilhança de seu filme para investir fundo no teor do conflito do humano diante do alienígena. Já Garland prefere priorizar um roteiro estrambótico, personagens vazias e cenas apelativas, tudo em função da narrativa, para deixar o mesmo conflito pequenininho, lá atrás, escondido.
Desculpem-me, mas o contraste é brutal demais para eu não mencioná-lo. Tarkovsky leva de longe.