“American Gods” adapta o cultuado Neil Gaiman de forma extravagante
Livro de Neil Gaiman, autor de “Sandman”, apresenta deuses na forma de ideias. Série é das mais vistas e comentadas de 2017
atualizado
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E se o deuses fossem apenas ideias, mas ideias tão veneradas que elas acabam se transformando em deuses? Questionamentos como este não passam indiferentes para aqueles que conhecem a obra de Neil Gaiman, o grande autor britânico que veio ajudar a socorrer a DC Comics nos anos 80 e 90, transformando um personagem esquecido dos seus quadrinhos da era de ouro (Sandman, lógico) em uma complexa fabulação mitológica sobre a vida, a morte e a eternidade.
De fato, a série do selo Vertigo “Sandman” (89-96) trouxe luz nova à perspectiva que tínhamos sobre o grau de “maturidade” que uma história em quadrinhos poderia atingir até então. Na saga de Gaiman, deuses, seres de ficção, anjos, demônios, elementais e “perpétuos” se encontram numa disputa interdimensional pelos vários mundos que habitam diferentes esferas da existência. O tratamento de Gaiman é poético, metalinguístico, transgressor. No plano do cinema, é como se o discurso prosaico do diretor Jim Jarmusch se encontrasse com a imaginação delirante de David Lynch. Uma coisa ao mesmo tempo rock and roll e literária.
Em 2001, Gaiman lançou seu mais famoso romance (uma carreira que ele sempre cultivou, paralelamente à de roteirista de quadrinhos), “Deuses Americanos”, que acaba de se transformar em uma série (“American Gods”) produzida pelo canal americano Starz e desenvolvida por Bryan Fuller e Michael Green (com produção executiva do próprio autor). Nele, acompanhamos a história de um homem recém-saído da prisão que se vê envolvido em uma disputa de deuses antigos contra deuses novos (os tais “deuses americanos”), disfarçados no aspecto prosaico da vida humana.
Confesso que, mesmo sendo fã de “Sandman”, nunca li o livro “Deuses Americanos”, mas a admiração e o respeito por este erudito autor de quadrinhos me levou ao menos à série, que passou quatro anos nas mãos da HBO para se tornar seu próximo blockbuster, mas que teve de ser veiculada mesmo somente na menorzinha Starz, distribuída no Brasil pela Amazon Prime. O resultado é controverso, errático, às vezes de mau gosto ou simplesmente mal feito. O que surpreende mesmo, porém, é a resistência da força das ideias de Gaiman, tão difíceis de serem vertidas às telas.
[SPOILERS, mas não muitos] “American Gods” parte da fascinante ideia de que deuses nascem e morrem a partir do momento em que existem fiéis que os veneram. Quando estes param de acreditar neles, eles fenecem e até deixam de existir. Como em “Sandman”, o mundo “real” não passa de uma construção da crença e dos acordos comuns sobre o imaginário, e deuses que, em outros tempos, detinham legiões de fiéis e poderes infinitos, hoje precisam se recolher em velhas casas americanas. A reflexão que a série propõe é pungente: as antigas crenças foram substituídas por novas, e estas em nada se parecem com os velhos deuses. As pessoas hoje preferem venerar a televisão, o sistema financeiro, as mídias, a globalização, o consumo. Gaiman está falando, é claro, da substituição de sistemas de ideias.
Esta série teria um grande potencial se este conteúdo (como se pode ver) não fosse de tão dura adaptabilidade. A televisão como um deus? O dinheiro como um deus? Ou simplesmente: o deus nórdico Odin está vivendo no interior dos Estados Unidos? Além disso, a ousadia estética da adaptação, se por vezes parece agressiva em um bom sentido (a paleta de cores em neon, as inteligentes inversões narrativas), em outras parece sair do tom (as estranhas cenas de sexo, o excesso de sangue de computador), ainda mais quando os efeitos especiais, pobrinhos, mereciam mais do projeto gráfico de um imaginário fantástico, de profundas resoluções imaginativas, como este.
Ainda assim acho importante defender a investida que o texto de “American Gods” faz sobre o tema da imaginação, especialmente porque procura também libertar a imaginação narrativa, com planos impressionantes de detalhes sobrenaturais e a utilização de reiterados pontos de vista sobre inúmeras histórias para dar conta do escopo intelectual da série. E neste sentido, a direção de fotografia e a montagem (extravagantes) abrem alas para as grandes atuações não apenas dos protagonistas Ricky Whittle e Ian McShane, mas também de coadjuvantes como Emily Browning (como uma mulher que se descobre zumbi) e Peter Stormare (como o deus da morte eslavo Czernobog).
A primeira temporada de “American Gods” tem apenas oito episódios, e a série já foi renovada para uma segunda, que deve dar sequência ao livro de Gaiman. Serve como uma boa prova de como pode funcionar o universo adulto do autor inglês em audiovisual, mas é uma adaptação ainda distante do ideal que gostaríamos de ver, por exemplo, quando “Sandman” for transposta para a telinha.