Para ler antes do filme: Mulher-Maravilha em quatro ótimas HQs
Antes da estreia do longa, prevista para 1º de junho, quatro especialistas comentam os melhores quadrinhos da heroína
atualizado
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O dia primeiro de junho verá a estreia de “Mulher-Maravilha”, quarta investida da DC/Warner em seu universo integrado de filmes e, dizem, a primeira realmente certeira. Esse será o primeiro filme de super-heróis de padrão “blockbuster” dirigido por uma mulher (Patty Jenkins, de “Monster”) e, ao que parece, tudo estará conectado ao universo feminino.
Porém, a criação da personagem é creditada a um homem, o excêntrico professor da Universidade de Columbia William Moulton Marston. Autor de livros “pop” de psicologia nos anos 1940 e entusiasta dos quadrinhos, Marston foi convidado a criar uma HQ, em 1941, e seguiu o conselho de sua companheira, Elisabeth Holloway Marston: por que não criar uma super-heroína?
Elisabeth e Marston viviam, junto a Olivia Byrne, o que hoje em dia chamamos de “relacionamento poliamoroso”, e o “tipo” da namorada foi usado como modelo para a criação da fisionomia da Mulher-Maravilha. Nos sete anos em que escreveu as histórias da heroína (até morrer de câncer em 1947) junto ao ilustrador H.G. Peter, sempre influenciado pelas ideias da esposa, o autor aplicou elementos de psicologia arquetípica e introduziu vários símbolos não apenas de um emergente feminismo (amazonas, uma ilha habitada apenas por mulheres, um matriarcado) como também de suas práticas S&M (como os braceletes e o laço).
Após a morte de Marston, Olivia e Elisabeth continuaram vivendo juntas, um final no mínimo auspicioso para a história que desemboca no aguardado blockbuster — que contém elementos típicos de Zack Snyder (fotografia escura e platinada, com muita ação em montagem oblíqua), além de certa dose de humor hollywoodiano (influência da fórmula da Marvel). A ação deve se passar quase toda na Primeira Guerra Mundial e conta com Chris Pine fazendo o Capitão da Aeronáutica Steve Trevor, eterno amor da Princesa Diana (a exuberante e imponente Gal Gadot).
Para ajudar a assentar a ansiedade, resolvi fazer diferente e convidar três especialistas na Princesa da Ilha Paraíso para falar sobre suas histórias favoritas. São eles o professor e pesquisador em comunicação e quadrinhos Raimundo Lima Neto, a também pesquisadora Havane Melo e o designer, ilustrador e coeditor do site Bear Nerd, James Figueiredo. Além de uma contribuição minha, pra não ficar só na vontade.
Quatro HQs de referência da Mulher-Maravilha:
“Wonder Woman Archive Editon Vol. 2” – William Moulton Marston e H. G. Peter (1942): Esta edição reúne as histórias da Princesa Diana em seu título próprio. Tem início em Wonder Woman #2, publicado no outono de 1942, período em que os EUA já se encontravam em guerra contra os países do Eixo. O título se tornou propaganda para vender bônus de guerra e patrocinar a campanha dos soldados americanos em terras estrangeiras.
Neste ambiente de guerra, destacam-se os ideais do criador da personagem, o psicólogo William Moulton Marston – hoje com reconhecida influência de sua esposa, Elisabeth Holloway Marston, e da companheira do casal, Olívia Byrne.
Nas histórias do período, somos apresentados ao deus da guerra Marte (que anos depois assumiria seu nome grego de Ares) e seu trio de ajudantes: Conde da Conquista, Duque do Engodo e Conde da Avareza. Juntos, os quatro inimigos, vindos diretamente do planeta vermelho, influenciam os líderes do Eixo e garantem que a Terra se mantenha um terreno fértil para guerras sangrentas alimentadas pelos egos desenfreados.
Graças aos aspectos mitológicos da história e aos esforços de empregar a “justiça amorosa” da cultura das Amazonas (um dos conceitos chave de Moulton era de que a paz advinha do controle do ego e da entrega submissa a uma autoridade amorosa), a característica ingenuidade dos quadrinhos da época ganha ares de realismo mágico no título. Cada aventura se torna uma colorida alegoria encabeçada pela Princesa Diana, onde o amor – e um erotismo patente e livre de moralismos – é a melhor arma para lutar contra a guerra e a brutalidade do mundo dos homens. (Raimundo Lima Neto)
“Mulher-Maravilha” de George Pérez (1987-1992): Após realizar o mais fundamental “reboot” da DC (a “Crise nas Infinitas Terras”) em 1985, o aclamado ilustrador e roteirista George Pérez foi recrutado, em 1987, para participar da renovação dos arcos de histórias da Mulher-Maravilha, trabalhando no título por seis anos e realizando a mais lembrada e gloriosa fase da personagem.
Pérez, um ilustrador elegante com influência da linha clara francesa, trouxe à tona (com a eventual colaboração do também craque dos roteiros Len Wein) uma Mulher-Maravilha que conseguia ser ao mesmo tempo justa, sábia, paciente, compreensiva e encantadora.
Longe da posição submissa dos anos 1950 ou das versões mais “agressivas” atuais, Pérez e Wein buscaram um certo padrão de “feminino” coerente com os anos 1980 (e o visu com megahair não deixa negar). Apaixonante e sem qualquer vulgaridade (mas sem ser casta), essa Diana exemplifica bem o amadurecimento na mentalidade do arquétipo do super-herói da Era de Bronze dos Quadrinhos.
Além disso, Wein e Pérez reimaginaram a origem da heroína colocando em evidência o panteão dos deuses gregos e as habitantes amazonas da Ilha de Themyscira (verdadeiras aulas de literatura e história), com fortes personagens coadjuvantes e tratamento literário aos roteiros, com cartas, fotos e um debate aberto sobre temas como diversidades de gênero, étnica e racial, as origens do discurso patriarcal e as possibilidades de convivência harmoniosa entre as visões masculina e feminina do mundo. Para além de simplesmente passar num teste de Bechdel, estes quadrinhos de Pérez dão um banho em certos debates inócuos de Facebook dos dias de hoje. O material está sendo relançando este ano pela Panini em volumes encadernados (Ciro I. Marcondes)
“Mulher Maravilha: Sangue” e “Mulher Maravilha: Direito de Nascença” – Brian Azzarello, Cliff Chiang e Tony Akins (2016): Dentro do universo dos Novos 52, as histórias da Mulher Maravilha, disponíveis no Brasil em dois encadernados até agora, retomam à temática mitológica. Com roteiro de Brian Azzarello, a heroína vive uma grande saga envolvendo deuses e semideuses que tentam proteger a humana Zola, grávida de Zeus, de um Hades infantil e birrento.
Com personagens carismáticos, bem construídos psicológica e visualmente dando suporte à trama, acompanhamos a jornada da amazona, que comete equívocos, perde sua protegida e vive uma curiosa aventura no inferno. Divertido e excitante. Aguardamos ansiosos para ler o final dessa jornada. (Havane Melo)
“Mulher-Maravilha”, fase “Renascimento” – Greg Rucka, Liam Sharp e Nicola Scott (2016-2017): Ao final de 2016, a DC Comics realizou a mais recente reformulação em seu universo fictício. Batizada de “Renascimento”, a fase começou a ser publicada no Brasil agora, no final do mês de abril. Basicamente, foi uma transição do período conhecido como “Os Novos 52”, iniciado em 2011, para uma abordagem mais “pura” de seus personagens. No caso da Mulher-Maravilha, isso representou uma “retratação” das histórias comandadas por Brian Azzarelo e Meredith Finch.
A nova fase inaugura, no Brasil, o primeiro gibi solo da Princesa Amazona desde 1981 e traz as histórias escritas pelo roteirista Greg Rucka. Velho conhecido dos fãs da heroína, Rucka escreve uma trama dividida em dois arcos: o primeiro, intitulado “Mentiras”, se passa no presente e mostra a Mulher-Maravilha lidando com o que parecem ser memórias falsas e confusas de sua vida. O segundo, “Ano Um”, traz uma releitura da origem da personagem, desde sua juventude em Themyscira, a Ilha Paraíso, lar das Amazonas.
“Mentiras” é desenhado pelo britânico Liam Sharp. Seu estilo sombrio e detalhado imprime um clima muito apropriado à história, que mostra a Mulher-Maravilha batalhando tanto seus demônios internos quanto os de verdade, incluindo uma versão repaginada da Mulher-Leopardo, vilã clássica da heroína. Já “Ano Um” traz a arte da australiana Nicola Scott. A artista usa um estilo limpo, alegre, que é perfeito para retratar uma personagem inexperiente, empolgada e ainda muito otimista em relação ao Mundo do Patriarcado.
Ao mesmo tempo em que move a história da heroína para frente, Rucka constrói uma narrativa em flashback que situa o leitor nesse universo, e vai, aos poucos, unindo as pontas dos dois arcos de forma muito eficiente. Mais importante, o roteirista mostra que entende realmente a personagem, criando uma Mulher-Maravilha adorável. Recomendo com fervor! (James Figueiredo)