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A Entrevista, HQ de sci-fi italiana, vai da psicologia ao pós-humano

Do italiano Manuele Fior, romance gráfico explora a ficção científica contemporânea

atualizado

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A Entrevista, romance gráfico do italiano Manuele Fior lançado no Brasil pela Editora Mino, termina como um típico episódio de ficção científica clássica. Poderia estar em Jornada nas Estrelas. Desculpem-me pelo spoiler, mas se trata de uma sequência exemplar: a última mulher de um certo tipo humano, muito idosa, relata a um grupo de jovens – uma nova humanidade transformada pela habilidade telepática – como as coisas eram “antigamente”, antes de uma revolução física, cultural e comportamental redefinir a própria ideia de humano.

Essa cena, destacada do resto do gibi, poderia se alojar em qualquer lugar: no começo, no meio ou no fim. É ela – a entrevista em si – que permite a “passagem de bastão” de uma humanidade a outra. De um humano a um pós-humano. Uma dramaturgia semelhante está em 2001 – Uma Odisseia no Espaço, no livro O Fim da Infância (ambos de Arthur C. Clarke) e até no filme Interestelar. A mensagem é um disparo certeiro: quando o pós-humano vier, conseguiremos suportar a dor de reconhecer a limitação de nossa própria humanidade?

Este quadrinho é originalmente uma publicação da editora francesa Futuropolis, que tem tradição em lançar títulos desta sci-fi voltada para um tensionamento mais alegórico e psicológico – distante, na verdade, do próprio Futuropolis original, uma HQ francesa dos anos 1930 capaz de inventariar uma distopia na qual a última cidade da Terra era vítima do jugo de uma tecnocracia.

A Entrevista acabou me lembrando mesmo é de Les Derniers Jours d’un Immortel (Os Últimos Dias de um Imortal – não lançado no Brasil), dos franceses Gwen de Bonneval e Fabien Vehlmann, que esteve em Angoulême em 2011 e trata de um futuro no qual cada ser humano pode protagonizar a imortalidade através de clones espalhados pela galáxia. O assassinato de um desses “imortais” nos leva a uma espécie de noir existencialista, alegórico e procurando problematizar questões que também condizem ao pós-humano (como a imortalidade).

Futuropolis, de René Pellos (1937–1938)

 

Os Últimos Dias de um Imortal, de Bonneval e Vehlmann (2010)

 

Manuele Fior também esteve em Angoulême em 2011 (e venceu o Fauve d’Or com Cinco Mil Quilômetros, lançado no Brasil pela Devir). Ilustrador tarimbado e veterano, ingressou tarde no mundo dos romances gráficos, mas vem impactando esse ambiente desde então. A Entrevista conta, em um futuro próximo, a história de um psicólogo em crise no casamento que, num estranho processo transferencial, fica fascinado por uma jovem paciente adepta de um culto libertário de relações sexuais e afetivas. Ambos protagonizam contatos imediatos com objetos voadores no céu, antecipando uma mudança de paradigma para todo o comportamento humano.

Fior sabe ser narrativo, compondo diálogos e personagens consistentes que encobriram um pouco o aspecto simbólico do quadrinho. A arte em giz e nanquim é fosca, nebulosa, e as paisagens italianas ilustradas com detalhismo fotográfico dão um certo exotismo “chique” para os ambientes normalmente assépticos dos quadrinhos de ficção científica. Prima, porém, em uma delicadeza de estilo, com quadros que respiram contemplativamente, ações sugeridas, arestas abertas e uma certa incongruência que paira no ar.

Este uso psicológico/existencialista da ficção científica em A Entrevista lembra também o estilo adotado por Wagner William em Bulldogma (2016), um sofisticado romance gráfico de verniz surrealista em que uma jovem hipster – que está escrevendo um romance gráfico – passa a ter em sua vida interferências alienígenas que nunca realmente se efetivam. As técnicas de ilustração são parecidas, e também o aspecto meio inacabado da natureza do contato alienígena.

Bulldogma, de Wagner William (2016)

 

Como em tantas e tantas obras sci-fi, a inteligência extraterrestre surge aqui como signo do deflagrar de uma nova era, da libertação dos nossos corpos em relação à flutuação livre da mente. Pivôs dessa mudança de paradigma, estes ETs são máquinas espirituais e existem para pegar na nossa mão e nos conduzir a um novo ato evolucionário.

Que a ficção científica – antes gênero pulp e marginal destinado a nerds – tenha se tornado mainstream todos sabem. Hoje, com sofisticadas programações de inteligência artificial, com a tendência forte ao ciborguismo e com as engenharias molecular e genética mordiscando nossos pés à noite, sabemos que histórias como A Entrevista devem se tornar mais comuns. Já começam a cair as primeiras gotas da tempestade pós-humana que se anuncia. E isso é muito Black Mirror.

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