Vítima e vilão: reflexões sobre o assédio no mundo LGBT
Homens, independentemente da sexualidade, reproduzem o machismo estrutural da sociedade
atualizado
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Na última semana, um farmacêutico me contou que, após aplicar injeção em um homem, na sala reservada, o paciente se virou para ele, mostrando uma explícita excitação. Não satisfeito, ainda disse “E aí?”. Diante do choque, o profissional respondeu: “E aí o quê?”. O homem apenas se recompôs, pegou a mochila e foi embora.
Há muito tempo eu gostaria de abordar esse tema. Desde o começo do debate a respeito de assédio eu me sentia na obrigação de abordar a questão, mas com um olhar específico. E quando o abuso acontece entre pessoas do mesmo sexo, sobretudo entre homens?
Pelo menos da parte da vítima, não percebi diferença nos relatos publicados na imprensa. Sentimento de violação, impotência, profunda tristeza e medo de que o evento se repita ou do retorno do agressor.
No caso relatado, meu amigo descobriu o nome e o endereço do agressor por ele ter feito um cadastro, e o susto: o homem morava perto da farmácia. A constatação aumentou o sentimento de ameaça e de medo do farmacêutico.
Quando o cliente saiu, o funcionário contou o ocorrido para sua colega de trabalho. Aos risos, ela disse: “Ele é realmente muito bonito”. No entanto, a mulher mudou ao perceber que ele estava lhe contando um fato, e não uma fantasia de conto erótico. Ele recebeu apoio de toda a equipe do trabalho.
Da parte do agressor, eu nem consigo imaginar o que pode levar alguém a ficar excitado durante uma aplicação de injeção. Mas também, isso não é o propósito aqui. A abordagem do rapaz deve ser enquadrada no mínimo como inapropriada. Talvez fizesse sentido em algum filme pornô – assim, chegamos a outra reflexão: a formação sexual e afetiva de muitas pessoas tem sido construída a partir da facilidade do acesso à pornografia.
O relato desse rapaz fez perceber algo que me passava batido quando eu lia as denúncias de mulheres atacadas por Harvey Weinstein. O choque da situação te impossibilita de dizer não. Ele trava a voz, congela os músculos. O farmacêutico só conseguiu abrir a porta porque o ato era mecânico, mas demorou bastante tempo para lembrar de soltar a maçaneta após o homem sair correndo.
Do mergulho no sentimento da vítima, fui olhar para o interior do assediador e pensei em algo muito obscuro. Encontrei a pergunta: será que algum dia eu coloquei alguém nesta posição? Nunca agi como esse cara, mas assédio não é só aquilo. E é aqui que a porca torce o rabo quando falamos em assédio entre homens. É sabido: o machismo estrutural da sociedade gera agressores. Nesse caso, os homens são vítimas e agressores. E eu sou homem.
Não estou dizendo que todos os homens são agressores, mas a responsabilidade de não agir dessa forma e de evitar a propagação do machismo é sobretudo nossa.
E o fim da história foi que, dias depois, o farmacêutico viu pela câmera de segurança o cara e um amigo. Ele não foi atendê-los e pediu a outra pessoa que o fizesse. Enquanto o amigo recebia a aplicação, o agressor o procurou entre as estantes.
Todos os funcionários decidiram que ninguém mais vai aplicar injeção no rapaz da mochila.