O que seria dos LGBTs se não tivesse existido a Aids?
Já parou para pensar o que teria sido do movimento LGBT se não tivesse existido a Aids? Você já se deu conta do que esta síndrome fez quanto a aceitação e preconceito das questões de orientação sexual e gênero? Vamos tentar criar esta realidade. Para se ter uma ideia do mundo às vésperas da descoberta […]
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Já parou para pensar o que teria sido do movimento LGBT se não tivesse existido a Aids? Você já se deu conta do que esta síndrome fez quanto a aceitação e preconceito das questões de orientação sexual e gênero? Vamos tentar criar esta realidade.
Para se ter uma ideia do mundo às vésperas da descoberta do vírus HIV, eu sugiro que vocês assistam o filme “Os Rapazes da Banda” ou os 5 minutos iniciais de “The Normal Heart”. Neles vemos toda a alegria e excitação que os LGBTs sentiam logo após as batalhas de Stonewall em 1969.
Foi dado o primeiro grito em nome da liberdade de amar quem você quisesse e, ao som da disco music, a sensação era de que o mundo inteiro estava entrando numa balada sem hora para acabar, com uma área vip gay que era um arraso. Porém, longe da hora de fechar a boate, os primeiros convidados começaram a dar sinais de que algo não estava bem e, em pouco tempo, começaram a morrer.
Logo um dado científico foi interpretado como ameaça catastrófica nas manchetes da mídia hipócrita e preconceituosa, que anunciava na primeira página: o “câncer gay” havia se espalhado. Ninguém sabia ao certo como se pegava, nem como evitar, mas todo mundo tinha certeza que era doença de viado, pois só eles estavam morrendo.
A Aids assim foi chamada por muito tempo e até hoje um frio na espinha me sobe quando leio esta expressão horrenda, o “câncer gay”.
Junto veio todo tipo de palpite, que brotava do pavor e do desespero. “É um castigo divino para acabar com essa imoralidade”. “Deus está mandando o recado”. “É o anúncio do fim do mundo”. “Esse povo merece mais é morrer mesmo e desse jeito, sofrendo bastante”. A alegria da festa deu lugar ao medo. E do medo veio a solidão.
Todas as liberdades que a luta coletiva havia alcançado passaram a ser lidas como maldições e provocadoras das desgraças que agora todos viviam, e quando eu digo todos eram todos mesmo. Os héteros tinham medo dos gays, porque agora eles eram como os ratos que proliferavam a peste negra na Idade Média, ou mais modernamente o aedes aegypti e a dengue. O que você deve fazer com o vetor da doença então? Eliminá-lo.
O discurso de ódio se mascarou como questão de saúde pública. Ser tolerante era por em risco a sua vida e a de todos os outros. Falar em igualdade e respeito era a exceção, sem contar o humor mais chulo e ofensivo que se pode imaginar fazendo piada com homens afeminados e o risco de se contaminar por conta do sexo anal.
Diante de tantas ameaças, a organização política dos LGBTs surgiu como questão de sobrevivência, ou seja, foi por conta da Aids que a orientação sexual e a transgeneridade se tornaram pautas dos debates políticos e temas de projetos de leis. Mais ou menos uma década depois apareceram os remédios, o isolamento do vírus e os casos em heterossexuais, mas nunca se falou em atitudes para expurgar o sofrimento e pouco sobre o preconceito causados pela ignorância daquele tempo.
A Aids atrapalhou um bocado o trajeto da inserção dos LGBTs na sociedade brasileira, mas se ela não tivesse existido nós estaríamos vivendo uma realidade diferente? É difícil afirmar isso, pois hoje o fantasma desta síndrome já não assusta como antes e mesmo assim enfrentamos o preconceito, agora fomentado pelo fundamentalismo religioso, nas instituições oficiais e na mídia.
Se a camisinha ajuda a preservar a saúde, a ameaça hoje é moral e tenta ser também legislativa.
Na verdade, parece que, para quem não quer aceitar o diferente, qualquer motivo é motivo. Seja um vírus ou apenas uma crença religiosa.