O Judiciário em defesa dos transexuais
A Justiça tem se mostrado o poder mais progressista ante às questões de gênero e novas formações familiares
atualizado
Compartilhar notícia
Cleomirtes Pires, advogada com escritório no Setor Bancário Sul, começou a carreira atuando na sua cidade natal, um lugarzinho no interior de Goiás. Naquela época, em um dia qualquer, ela promoveu um típico almoço familiar em casa. Mas resolveu convidar, também, uma amiga e o juiz da comarca da cidade. Após todos se fartarem de comer e o respeitado magistrado passar uma ótima tarde conversando com a bela e agradável moça, a anfitriã os interrompeu no melhor do papo:
Então, meritíssimo, esta é a Brenda, mas o seu gênero na carteira de identidade é masculino. Amanhã eu estou entrando no fórum com o pedido para alterá-lo junto com o nome
Cleomirtes Pires
O juiz emudeceu, não podia acreditar. Pensava que seus olhos, e todos os demais sentidos, o enganavam. Mas a comprovação empírica era óbvia: não havia dúvidas que ela era uma mulher.
Apesar das evidências, o processo de Brenda levou seis anos correndo na Justiça. Ela conseguiu mudar o nome, mas nunca, lamentavelmente, trocar o gênero para feminino.
Militância com compaixão
Desde que atuou nesse processo, a advogada começou a se dedicar às questões de troca de nome social – é assim que juridicamente chamamos uma simples ação de mudança de nome. Para isso, mergulhou cada vez mais no mundo das travestis e transexuais.
Hoje sua equipe participa das reuniões que acontecem no Hospital Universitário de Brasília (HUB) para que, além do conhecimento jurídico da questão, eles sejam sensibilizados parar tratar de maneira humanizada os clientes que chegam ao escritório. Afinal, apesar de serem advogados, eles não tratam apenas de processos, mas de uma parte muito delicada da vida das pessoas.
Cleomirtes possui clientes de todos os níveis sociais – de consulesa italiana a motorista de ambulância do SAMU. O único público que ela não atendeu são homens transexuais que praticamente nunca buscaram ajuda em seu escritório. Mas em todos os casos ela põe em prática o que um grande amigo traduziu em palavras: “Não se engane: militância sem compaixão também é discurso de ódio”.
Direto dos transgêneros
As questões de gênero são um nicho de mercado rentável financeiramente para os advogados. Mas, a despeito dos esforços da OAB em incluir essas pautas nas suas reuniões, boa parte da categoria prefere não “mexer com esses assuntos”. Infelizmente, as coisas ainda se confundem e há um temor de que, ao se envolver com a causa transexual, o profissional pode ser interpretado como tendo um comportamento escandaloso, não condizente com o esperado pelos colegas de profissão.
“É um desafio, mas que eu estou disposta a encarar”, diz a advogada – casada, mãe de dois filhos, com um vigor na voz digna de todo bom defensor da sua causa – palavra aqui usada na acepção jurídica.
E sejamos justos, apesar da demora e dos percalços processuais, o Judiciário tem se mostrado o poder mais progressista ante às questões de gênero e novas formações familiares. A atuação dos juízes, entretanto, está restrita à demanda daqueles que os procuram. Diferentemente do que poderia ser feito pelo Executivo ou o Legislativo, onde eles mesmos propõem as pautas em discussão.
Não é só dinheiro
Cleomirtes está bastante animada, pois soube de duas decisões favoráveis à alteração do nome social e do gênero nos documentos, sem ainda haver sido realizada a designação de gênero. Traduzindo: foi concedida a mudança na documentação sem ter havido a cirurgia, situação extremamente rara e vanguardista. A decisão abre precedentes favoráveis a solucionar injustiças existentes muito antes da aparição de uma vagina ou de um pênis no corpo da pessoa.
Não tem como se envolver em uma questão como essa apenas por dinheiro, notoriedade ou nicho mercadológico. As palavras que a advogada mais usa para falar do seu trabalho são sensibilidade e questão social. É preciso ser sensível para perceber quem sofre na nossa sociedade. E, indubitavelmente, uma das armas mais poderosas para essas pessoas ainda é a Justiça. E um dos melhores instrumentos da Justiça é uma advogada como esta.