Empatia à segunda vista: quando aprendemos a rejeitar o que é diferente?
Está rolando na cidade a exposição “COMCIÊNCIA”, da artista australiana Patrícia Piccinini, no CCBB. A obra tem o objetivo de refletir sobre as alterações genéticas que a ciência moderna tem estudado e as criaturas que elas podem gerar. Curiosamente, esta exposição me pareceu caber como tema dessa coluna… Os seres criados pela artista, de um realismo impressionante, à […]
atualizado
Compartilhar notícia
Está rolando na cidade a exposição “COMCIÊNCIA”, da artista australiana Patrícia Piccinini, no CCBB. A obra tem o objetivo de refletir sobre as alterações genéticas que a ciência moderna tem estudado e as criaturas que elas podem gerar. Curiosamente, esta exposição me pareceu caber como tema dessa coluna…
Os seres criados pela artista, de um realismo impressionante, à primeira vista, provocam repulsa. São originalmente macacos, focas, marsupiais e até plantas que destacam o estranhamento que causam ao se misturar com o elemento humano. Após o susto inicial, as características humanas afloram diante dos nossos olhos por meio de um gesto, uma expressão ou uma parte do corpo.
Como a obra “Grande mãe”, em que uma enorme macaca dá de mamar a um bebê humano. Um ser talvez monstruoso nos surpreende com um dos gestos que mais enternece o coração humano: o amor materno. Por mais natural que seja a amamentação, afinal qualquer fêmea da família dos mamíferos é capaz de dar de mamar, nossa cultura o lê como uma linda demonstração de carinho.
Pode ser que meu olhar esteja ficando viciado – assim como o do ginecologista que, ao ver a Vênus de Milo, ouve da sua esposa “Como ela é linda”, este lhe responde sobre a famosa estátua, “É, mas tem os quadris muito estreitos, terá sérios problemas no parto” -, mas eu não consegui não refletir sobre a questão LGBT na sensação provocada diante das obras de Piccinini. Nem falo do debate já exposto aqui na coluna a respeito do caráter genético da homossexualidade. Apenas imaginei a reação de alguém que pela primeira vez na vida vê um beijo entre duas pessoas do mesmo sexo.
A reação é parecida com o estranhamento de quem vê uma criança brincando com um bicho parecido com uma preguiça de longas garras e dentes afiados. Há um desconforto, um estranhamento. Mas no segundo olhar, você percebe que o bicho não está atacando a pobre menina, mas indo para lhe dar um abraço, revelado pelo sorriso aberto e sem reservas da garota. E se você perceber que o que está acontecendo é um ato de carinho, um beijo? Quantas vezes somos enganados pelos nossos olhos por conta das regras, inclusive estéticas, incrustadas na nossa mente?
O maior choque que senti na exposição foi diante da obra “Indiviso”. Uma criança digna de propaganda dorme profundamente. Abraçada a ela, como um urso de pelúcia, uma criatura gorda, de carapaça, com pés humanos, uma cara que lembra um porco e umas coisas peludas brotando nas costas.
É horrível e nos angustia que ela ataque o pobre menino indefeso. No entanto, enquanto observamos esta cena incômoda, vemos que o ataque não se dá e que o ar sereno do menino revela todo o caloroso afeto que há entre os dois. Na explicação gravada na parede, uma pergunta nos desconserta: “Quando aprendemos a estranhar ou rejeitar outros seres”? Quando? Quando aprendemos, pois nos é ensinado, a rejeitar o diferente? A ligar o outro ao errado. A entender o carinho.
Nas suas entrevistas, Patricia revela a origem das suas obras artísticas nas notícias a respeito de pesquisas científicas de alteração genética, como a do rato que cientistas fizeram crescer uma orelha humana no seu lombo. Contudo, o interesse da artista pelas pesquisas científicas surgiu quando sua mãe teve câncer e tudo o que ela queria era que a medicina descobrisse a tempo uma cura para ela. Infelizmente, isto não aconteceu.
Tudo isso me remete às falas finais da peça “A Vida de Galilei”, de Bertolt Brecht, que diz: “Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a canseira da existência humana. E se os cientistas, intimidados pela prepotência dos poderosos, acham que basta amontoar saber por amor ao saber, a ciência pode ser transformada em um monstro e nossas novas máquinas serão novas aflições, nada mais”.
É por isso que não é possível olhar esta obra apenas como exercício criativo de seres geneticamente híbridos. O fator humano – de como conviver com o novo e descobrir a intenção sob as formas externas – é a real matéria deste trabalho. E não é esta também a real matéria desta coluna?