Devassos no Paraíso, livro sobre LGBTs no Brasil, ganha reedição
A obra de João Trevisan é um necessário compêndio sobre a violência, cultura e política em torno da comunidade
atualizado
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No primeiro capítulo de Devassos no Paraíso, que ganha nova edição depois de 18 anos fora de catálogo, o escritor João Silvério Trevisan revisita o conto Cine Íris, de Aguinaldo Silva. No texto, após um passeio por um cinema de pegação, “uma guei” debutante encontra pichado na parede do banheiro: “O Cine Íris também é Brasil”. Essas poucas palavras abarcam a ideia inteira do livro.
A primeira edição do Devassos saiu em 1986, após 4 anos de pesquisa atendendo ao pedido da editora britânica Gay Men’s Press de uma publicação sobre a história da homossexualidade no Brasil. Apesar do extremo sucesso editorial, suas reedições sempre enfrentaram enormes dificuldades, passando entre 15 a 18 anos sem ser republicado. Dentre as razões de recusa, a obra e seu escritor foram “acusados” de pornográficos. No entanto, o interesse pelo livro nunca se apagou – em alguns sebos, unidades chegavam a custar R$ 700.
Nesta quarta edição – revista, ampliada e atualizada –, publicada pela Objetiva, a capa é da Laerte. Muita coisa foi mantida como registro histórico. Um exemplo é que, na parte preservada das primeiras versões, a palavra travesti vem antecedida do artigo masculino, pois, assim era a grafia da época. No entanto, nas 150 páginas acrescentadas, ela vem precedida do artigo feminino, marcando a mudança de postura da sociedade.
Trevisan é um escritor maravilhoso porque se coloca nas palavras. Isso quer dizer, por exemplo, que ele escreve a palavra “guei”, ao invés de gay. No filme Lampião da Esquina, ele justifica essa grafia para facilitar a leitura nos rincões do país. Ou seja, dos anos 1970 até o final da década de 2010, a luta por abrasileirar expressões estrangeiras continuam na sua pauta particular, independentemente da temática.
Um ponto de grande destaque sobre Devassos é que poderia ser apenas um livro informativo e já teria seu imenso valor. Porém, Trevisan é um tremendo escritor, deixando cada frase lindamente artística e uma delícia de ler. O capítulo sobre a biografia de Carmem Miranda, em que resgata sua persona e influência para a comunidade LGBT brasileira e mundial, é uma obra-prima da literatura.
Aliás, este capítulo serve de apêndice à biografia da Pequena Notável escrita por Ruy Castro, que não faz qualquer referência à relação de Carmem com os LGBTs, responsáveis, entre outra coisa, por perpetuar sua memória.
Já na parte nova, Trevisan atualiza os dados do livro, analisa a atual situação política brasileira (chegando até a pessoa de Marielle Franco e Letícia Lanz) e dá apontamentos do porvir. Ou seja, atualizadíssimo! Mas sobre Marielle, o livro não trata diretamente do seu assassinato e dos possíveis envolvidos.
Trevisan disse que só descobriu Marielle por conta da sua morte trágica. Ao ler sua biografia, ele viu que sua trajetória era o ideal de formação eficaz de carreira política para conquistar uma verdadeira representatividade. Para o autor, infelizmente, com frequência nossos representantes políticos surgem de maneira meio improvisada, dificultando a mobilização para se eleger candidatos LGBTs.
E ele avisa mais: a direita que matou Marielle é mais consciente do nosso poder do que nós mesmos e por isso age com tal violência para nos calar.
Trevisan está decepcionado com a política brasileira, inclusive com os progressistas. Mas ressalta: os LGBTs ganharam a própria voz. Agora a gente fala por nós mesmos! Agora a gente se define ou assume a própria indefinição. Essa conquista não tem preço.
Eu tive a oportunidade de dizer para Trevisan, da minha própria voz, que a forma como eu escrevo esta coluna é inteiramente influenciada por Devassos no Paraíso. Não existem palavras capazes de expressar o orgulho que eu sinto de, não só poder ter finalmente o meu exemplar do livro, como de vê-lo nas estantes das livrarias.
Tenho certeza que você compartilhará desse sentimento depois de ler a obra – vai sentir aquele calor no coração por saber que este livro está novamente ao alcance de todos.
P.S: Pedi ao João Silvério que mandasse uma mensagem à juventude que finalmente lerá seu livro. Ele disse “NÃO EMPRESTEM DEVASSOS NO PARAÍSO. É o livro mais roubado da história da literatura mundial. Quem emprestou, não o teve devolvido e eu digo bem feito, porque avisei”. Então, fica aqui a dica do mestre.