Caso Lucía Perez. O que temos a aprender com as feministas argentinas
Existe um risco de que o movimento brasileiro nunca passe de um feminismo personalista, individual, que banaliza a palavra “empoderamento”
atualizado
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É preciso saber a hora de falar e também a hora de calar para ouvir quem tem algo a dizer. E, neste momento, as mulheres da América Latina gritam: “Ni una menos!”. Por isso, nossa coluna convidou Carolina Alves Leite, mulher lésbica, mestranda em sociologia pela Universidade Federal do Piauí, com tema relacionado a feminismo e maternidade, para nos apresentar esse movimento, que nasceu na Argentina. Ela analisa o papel do Brasil em relação a tudo isso. Com a palavra, Carol:
No início de outubro, estive no II Congresso Internacional de Diversidade Sexual e Gênero da UFMG e pude ouvir a feminista argentina Dora Beatriz Barrancos em uma conferência sobre feminismos, sexualidade e gênero na América Latina. Exilada política da sanguinária ditadura militar argentina, Dora disse que o feminismo brasileiro foi uma de suas maiores inspirações na militância pelas causas das mulheres. Isso me fez pensar que talvez ela estivesse sendo modesta.Acontece que Dora estava falando de uma realidade a qual não vivenciei: o feminismo brasileiro dos anos 1970. O movimento eclodiu como forte resistência à ditadura, negava os locais e papéis tradicionalmente designados às mulheres, além de enfrentar violações de cunho sexual e a manipulação do vínculo entre mães e filhos nesse período da história brasileira.
O Brasil da época andava junto ao contexto amargo das ditaduras latino-americanas e, se compararmos mais especificamente a questão política brasileira com a argentina, há muitos pontos em comum, principalmente quanto à situação feminina.
O sufrágio feminino, os golpes de Estado coexistentes e o período ditatorial vivenciado — quando movimentos feministas dos dois países exerceram forte influência na luta contra o caráter autoritário e patriarcal das ditaduras — deram coloração própria a cada país. Além das primeiras presidentas eleitas de ambos os países terem sofrido um golpe. A situação contemporânea também soma semelhanças. Aqui e lá vivenciam uma crescente onda conservadora com Temer e Macri.
Por aqui presenciamos uma primavera feminista, embasada em movimentos na internet, como #NaoMerecoSerEstuprada, #MeuAmigoSecreto e #AgoraQueSãoElas. Em novembro de 2015, mulheres em algumas cidades do país caminharam pelas ruas em atos dirigidos a Eduardo Cunha e seu infame projeto de lei que limita o acesso da mulher estuprada ao aborto.
Também tivemos manifestos contra a cultura do estupro devido aos estupros coletivos que marcaram maio de 2016. Ambos os momentos tornaram-se emblemáticos na luta contra o conservadorismo crescente que tem dominado o Brasil e o mundo, em uma forma de backlash às conquistas recentes.
Em paralelo, na Argentina, em junho de 2015, 300 mil pessoas foram às ruas em um movimento intitulado #NiUnaMenos, em prol da vida das mulheres. Em seguida, a mobilização passou a ser não só pelo fim do feminicídio, mas por vidas mais dignas e seguras para elas, com a hashtag #VivasNosQueremos.
Chile e Uruguai acompanharam as vizinhas ao somarem-se à marcha com manifestações locais. O Brasil manteve-se apartado. Semana passada, a morte de Lucía Perez, 16 anos, chocou a Argentina. A jovem foi drogada, estuprada e empalada na cidade costeira de Mar del Plata. O caso é considerado um dos feminicídios mais selvagens registrados no país e fez com que milhares de mulheres argentinas se unissem em uma greve geral de uma hora, que ocorreu na quarta-feira (19/10).
O evento, convocado pela hashtag #NosotrasParamos e recuando ao grito de #NiUnaMenos, fez também com que, horas depois, dezenas de milhares de pessoas marchassem na chuva em várias partes do país.
A mobilização ocorreu simultaneamente no Uruguai, México, Bolívia, Chile, Nicarágua, Honduras, Porto Rico e Paris. Mais uma vez o Brasil ficou à parte, resolvendo se unir aos protestos apenas no domingo (23/10) e nesta terça (25/10), após discussões acaloradas nas redes sociais sobre seu descaso com a causa.
Apesar das semelhantes trajetórias políticas e das violências sofridas entre as mulheres do Brasil e Argentina, percebe-se um ritmo destoante por parte das mobilizações. A Argentina encontra-se, aparentemente, muito mais enfurecida e imediatista em suas reivindicações. Enquanto no Brasil temos um teor pop e alegórico nas reivindicações, que pouco ultrapassa os limites das redes sociais.
A postura bem-humorada e menos ideológica dos feminismos brasileiros tem muito a dizer sobre esse contraste. De fato, não é à toa que dizemos estar em uma primavera feminista, por estarmos ainda a colher as flores das conquistas que começaram timidamente em 1970 e ganharam mais turbulência em 1980. Flores essas que parecem não ter espinhos em seus caules — ou eles são ignorados.
As páginas no Facebook, as campanhas contra assédios e os gritos de guerra em tom bem-humorado — “se liga seu machista, a américa-latina vai ser toda feminista” –, fazem jus à dinâmica dos feminismos que emergem no Brasil atualmente.
A Marcha das Vadias, um dos movimentos que se tornaram mais emblemáticos por aqui, traz a imagem de estudantes bonitas que tiram a roupa e gritam ser vadias, quebrando um código a partir disso. É de se detectar que existe um risco de que o nosso movimento nunca passe de um feminismo personalista, individual, que banaliza a palavra “empoderamento” em clima de desabafo e pouca ação.
Não nos chocamos tanto quando quatro meninas na cidade de Castelo no Piauí foram estupradas, violentadas e jogadas de um penhasco em maio do ano passado, assim como sofreu Lucía Peréz. Foi preciso um crime bárbaro como o estupro de uma adolescente por 33 homens para que começássemos a reagir contra a cultura do estupro
Nossa ficha demorou a cair em solidariedade às vizinhas argentinas. Estamos em descompasso com mobilizações mais unificadas e a dúvida que paira é se estaríamos a dar passos menos largos do que as argentinas ou se nosso modo de avançar é diferente.
Entretanto, entendo que nossos feminismos não se limitam a poucas causas e têm posto a boca no mundo com questões antes paralisadas no país hipócrita da cultura do corpo e da beleza. Se o pessoal demorou a se tornar político aqui, e ainda não se encontra tão político assim, entendo que andamos a nosso modo.
Nossas possibilidades são deveras animadoras. Renascemos com a transformação social e cultural de agitações também no mundo off-line, como de mulheres de periferia, do hip-hop, movimento estudantil e MST, sendo promissoras e mais pragmáticas e percebendo cada vez mais as contradições do universo machista.