Burle Marx era gay. E o que temos com isso?
Que mal há em se falar sobre a homossexualidade do paisagista? Eu não sei, mas que bem isso pode fazer, eu sei
atualizado
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Quando me mudei para Brasília, sempre que me levavam para conhecer a minha nova cidade, três nomes ocupavam as conversas ao longo de todo o passeio: Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx. Seis anos depois, passeando pela internet, foi uma surpresa quando li um texto que listava 100 personalidades históricas brasileiras que eram gays e, dentre as mais importantes, estava justamente o paisagista Burle Marx.
Como ninguém nunca havia mencionado isso antes? Não sei se algum dos arquitetos que me levaram aos monumentos e jardins da cidade parque sabiam deste detalhe. Um detalhe insignificante, que não muda em nada na beleza do trabalho desse artista. Mas, confesso, muda o meu olhar para a história da cidade que escolhi morar. Ela parece mais minha, mais próxima a mim.
Ao ler sobre como JK construiu a cidade, a gente só imagina aquele bando de homens em volta da mesa de projeção do Niemeyer — que se inspirava nas curvas femininas para criar seus prédios –, determinando onde ficaria cada coisa na cidade projetada por Lúcio Costa. Pensar que um homossexual declarado estava ali é, sim, mudar a lente que se conta a história, tanto quanto lembrar o nome de Marianne Peretti, única mulher na equipe de Niemeyer, responsável pelos vitrais da Catedral (talvez o meu monumento favorito em toda a Brasília).
Quando se fala em representatividade, em recontar a história de um viés ainda não contado, é trazer à tona a identidade, que muitas vezes nunca teve a oportunidade de ser formada. Quando alguém diz que “antes não tinha isso” é só falta de informação ou pura crueldade para que, quem não se sinta acolhido, continue se sentindo excluído.A reação da família de Burle Marx é típica nesses casos. Um primo, ao se declarar sobre o assunto, disse apenas que “ele era muito reservado na vida particular. Algumas pessoas até diziam que ele era homossexual, mas há coisas mais importantes a serem discutidas”. Claro, sempre há assuntos mais importantes, mas esses assuntos só aparecem quando a homossexualidade é pauta.
Trabalhos de Burle Marx:
Realmente, falar sobre a orientação sexual não deveria ser um tópico de conversa. No entanto, quando isso é um assunto a ser evitado, ou depreciativo se mencionado, então ser dito ainda será um posicionamento político. Ou como bem traduziu RuPaul: “Quando coloco um par de cílios, eu estou me posicionando politicamente”.
Que mal há em se falar sobre a homossexualidade do paisagista? Eu não sei, mas que bem isso pode fazer, eu sei: sabendo dessa informação, toda vez que um LGBTfóbico passar pela beleza do seu trabalho, ele vai se doer ao lembrar que aquele é o trabalho da sua fonte de intolerância. E toda vez que um garoto for chorar sozinho numa praça, porque não é aceito em casa pela sua orientação sexual, e olhar para o trabalho de Burle Marx, ele não vai se sentir tão sozinho por saber que quem fez aquilo foi um cara igual a ele.
Tudo isso parece com a minha cena favorita do filme “Django Livre”, do Tarantino. O personagem de Leonardo DiCaprio é um escravagista racista nojento que fez um escravo chamado Dartagnan ser devorado por um cachorro. Se ele deu o nome de Dartagnan a um escravo, era porque “Os Três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas, devia ser um dos seus livros favoritos. Daí alguém pergunta o que o escritor diria se visse a cena do escravo sendo devorado. Acontece que ele nunca havia visto nenhuma imagem do escritor e se choca ao descobrir que Dumas era negro.
Isso tudo deixa ainda mais irônica uma reportagem feita por um telejornal do DF expondo, de modo abismado, que a pouca iluminação no parque Burle Marx, “no coração da capital”, tem facilitado para homens que buscam outros homens para fazerem sexo. Assim como questionou o personagem do filme, eu também pergunto: o que diria Burle Marx ao ver esta cena?