Ao invés de achar pontos em comum, as pessoas buscam as diferenças
Opressões pessoais não invalidam as sofridas pelo outro, assim como tratar a todos como iguais é oprimir particularidades
atualizado
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No primeiro episódio da terceira temporada de “Transparent“, uma série que já estava num nível excelente chegou tão alto que tocou nas questões mais profundas e provocantes do seu tema.
Quando Maura, mulher trans branca de 70 anos, vai trabalhar num centro de apoio a pessoas que estão pensando em se matar, ela atende a ligação de Elizah, mulher trans negra de 17 anos. Neste instante, pela primeira vez na sua vida, a protagonista da série percebe estar diante de algo que sempre existiu, mas que nunca prestou atenção: o recorte.
Na primeira temporada, a protagonista sofre por ser trans e enfrentar a incompreensão da sua família e do seu mundo. Na segunda, dentre outros temas, é abordado o feminismo e sua linha que não compreende as trans. Neste episódio da terceira temporada a lupa se inverte e quem pratica o preconceito e tem que lidar com o estranho desconhecido é Maura.
Ela parte em busca de Elizah em um bairro da sua cidade que ela nunca pôs os pés, pois sempre foi de classe média alta e nunca precisou ir ali. Ela vai parar em um shopping que mais parece a nossa Feira dos Importados e sai desesperadamente a procura da jovem que nunca viu, completamente desorientada.
Quando encontra um grupo de trans latinas reunidas, Maura finalmente vê uma chance. Falando espanhol, o que facilita sua aproximação, dá o maior fora ao perguntar se elas nunca viram uma garota de cabelo verde “pelas ruas” ~eufemismo~. Uma das latinas era formada em administração e as outras duas estudavam enfermagem. Ela foi expulsa aos gritos.
Quando Maura finalmente alcançou seu objetivo, fazia tanto calor que ela passou mal e a última coisa que viu foi Elizah brigando com os enfermeiros para que Maura fosse tratada no feminino, pois ela é uma mulher.
Recortes existem. Como cada um vive uma característica é completamente influenciado pela sua classe social, etnia, gênero, etc. Influenciado não quer dizer determinado. Maura e Elizah serem mulheres transgêneros significa que uma entende a outra neste aspecto, mas em todos os outros se distanciam totalmente.
Infelizmente, algumas pessoas usam os recortes para excluir outras. Por exemplo, em um diálogo sobre lésbicas pode acontecer de uma lésbica negra de uma região administrativa do DF querer desqualificar a fala de uma branca do Plano Piloto, por dizer que elas não têm espaço para falar. Em contrapartida, pessoas com privilégios não estão acostumadas a ouvirem que não detêm o conhecimento total sobre uma questão que também estão inseridas.Dores e opressões pessoais não invalidam as sofridas pelo outro, assim como tratar a todos simplesmente como iguais é oprimir particularidades.
Às vezes, ao invés de buscar seus pontos em comum, as pessoas têm preferido marcar fortemente suas diferenças. Inclusive dentro de organizações cujo intuito é lutar por uma mesma causa. Maura e Elizah, em todos os outros âmbitos, estão separadas, mas em “Transparent” acontece o único ponto em que as das duas são semelhantes.