“Nosso país é sexista e precisamos falar sobre isso”, diz professora
Valeska Zanello, pesquisadora da Universidade de Brasília, ensina como a cultura transforma homens em agressores e mulheres em presas fáceis
atualizado
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A violência contra a mulher no Brasil é uma epidemia, cujo vírus está inoculado nos padrões de comportamento construídos pela nossa sociedade. Os feminícidios são o resultado extremo de uma cultura que transforma homens em agressores, e mulheres, em vítimas. Pesquisadora em estudos de gênero, a professora da Universidade de Brasília (UnB) Valeska Zanello explica os mecanismos perversos por trás da violência doméstica.
“Quando falamos da dengue, por exemplo, não discutimos a população alvo, falamos em combater o vetor. O mosquito, aqui, é o machismo. O nosso país é profundamente sexista e os homens estão adoecidos. Precisamos começar a falar sobre isso”, afirma Valeska. A maneira como eles são criados influencia, e muito, na maneira com a qual lidam com relacionamentos, frustrações e consigo. Quando as coisas saem de controle, eles recorrem à violência para voltarem a se sentir no papel de dominadores para o qual foram criados.
O machismo não é exclusividade masculina. As mulheres também são machistas. A diferença é que eles ganham algo com isso. Elas, em contrapartida, vão entrando em um ciclo de culpa que se repete há gerações até o ponto de a violência doméstica ser naturalizada. Pelo consultório de Valeska, já passaram vítimas que justificaram as agressões do parceiro – “Me bateu porque eu deixei o bife queimar, realmente, dei motivo” – ou não consideram um xingamento e empurrão algo sério. Ela afirma que, para mudar esse cenário, só por meio de investimento pesado em políticas públicas e educação.
A construção da masculinidade
“Se constrói a masculinidade no negativo e no imperativo. Ser homem no Brasil é não ser uma mulherzinha. O pilar central é a misoginia”, afirma Valeska. A pesquisadora explica que o processo de “validar-se” como homem na nossa sociedade é doentio: é preciso “se provar” repudiando qualquer qualidade feminina, transar com o máximo de mulheres possível e ter dinheiro e status social para chamar a atenção delas.
No caminho, eles embrutecem. Sendo avaliados por outros homens, cada risada, cada passo, cada decisão os coloca à prova. E, quando não conseguem mais ser chancelados pelos pares, usam a violência como uma forma de resgate identitário. Nos casos de relacionamentos abusivos, quando não são capazes de “controlar” a parceira, recorrem à violência para se reafirmarem como homens, como senhores da relação. Presente nos estudos de gênero, o conceito de masculinidade hegemônica representa a ideia culturalmente construída de que eles estão acima delas, exercendo o papel dominante.
“Ele acha que está no seu direito, que não está fazendo nada de mais. Em atendimento psicológico a agressores, passamos pelo menos seis meses tentando convencê-los de que as agressões que cometeram são erradas”, conta a professora. Os filhos de famílias com essa mentalidade violenta também não aprendem formas diferentes de ser homem, todas passam pelo caminho da força. “Por isso é tão importante falar de gênero. Precisamos começar a discutir a masculinidade hegemônica, desnaturalizar a violência”, continua Valeska.
As mulheres e o amor
Elas, em contrapartida, tradicionalmente, se julgam e são julgadas por dois parâmetros: o amoroso e o materno. A professora explica que as mulheres vivem como se estivessem em uma espécie de “prateleira do amor” esperando ser escolhidas por um parceiro. Essa expectativa da aprovação masculina permeia a relação delas com elas mesmas.
“Aprendemos uma forma de amar que nos torna extremamente vulneráveis, escolhemos ser escolhidas. Uma das coisas que mais me surpreende como clínica, e tenho 20 anos de prática, é o quanto um homem sem nenhuma característica positiva se torna um príncipe encantado só por ter se aproximado da mulher”, conta Valeska. Elas ainda sonham em ser amadas, em ser parte de um casal, enquanto eles crescem sendo validados pelo comportamento oposto.
“Esse descompasso faz com que as relações heterossexuais no nosso país sejam assimétricas. A gente dá mil, e recebe 10. Quem recebe 100, tirou a sorte grande”, diz. Segundo a professora, esse é um dos grandes fatores pelos quais as mulheres persistem em relações abusivas. Como no filme A Bela e a Fera, onde uma moça linda se apaixona por uma besta que é transformada em príncipe pelo amor, elas se casam com homens não pelo que eles são, mas por causa da pessoa que querem que eles sejam. “Isso é uma grande furada, mas terminar um relacionamento para elas é um fracasso como mulher.”
Outro ponto de validação feminino é o materno: ainda que elas não sejam mães, são sempre interpeladas a cuidar. Se alguém adoecer na família, são as mulheres as responsáveis. Assim, priorizam sempre a necessidade e o interesse do outro antes do próprio. O processo nos homens é diferente, eles estão sempre em primeiro lugar.
Apesar de o cenário estar mudando lentamente – as adolescentes empoderadas já têm bastante consciência sobre violência, sobre os fatores que não estão dispostas a aceitar –, ainda falta um longo caminho. Valeska conta que atende moças em seu consultório chateadas quando vão a uma festa e não ficam com ninguém. “Se elas não têm um homem que as legitime, estão gordas, feias, acabadas. É esse o nível de vulnerabilidade. Mas sou otimista. O que já foi conquistado, não tem volta”, afirma.
Políticas públicas e educação para mudar
A professora explica que o problema dos altos índices de violência contra a mulher é da sociedade, e a judicialização e a criminalização não são suficientes para resolvê-lo. Ela defende a implementação de políticas públicas e o investimento em educação para ensinar aos meninos tipos de masculinidade mais saudáveis e, às meninas, opções fora do dispositivo amoroso e materno. A prioridade não deve ser encontrar um príncipe, e sim estar bem consigo mesma, escolher uma profissão interessante, etc.
É importante educar para desnaturalizar a convivência violenta entre os sexos, “colocar essa masculinidade na berlinda”, defende a professora. “Fazer essa desconstrução de forma efetiva passa também por literatura, filmes, propagandas. Precisamos começar a discutir. As políticas de gênero para masculinidades ainda são muito incipientes e temos muito assunto para trabalhar. O foco precisa ser os homens”, diz.
Neste 2019, o Metrópoles inicia um projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país. Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.