Elas por elas: conheça a patrulha que protege mulheres em perigo
Metrópoles acompanhou um dia de trabalho dos policiais militares que visitam vítimas de violência doméstica que estão sob proteção judicial
atualizado
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Na maioria das vezes, a mulher vítima de violência doméstica não compreende muito bem o risco que corre. Não acredita que o homem amado irá ultrapassar limites e chega até a inventar desculpas para justificar o comportamento do companheiro. Mas o perigo é real. E é aí que entra o Policiamento de Prevenção Orientado à Violência Doméstica, o Provid, da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF).
Desde o final de 2015, a equipe de 88 policiais percorre a cidade fazendo rondas nos arredores das casas de vítimas apontadas pela Justiça ou identificadas como vulneráveis pelo próprio patrulhamento. O time, formado por oficiais voluntários, entra nas residências em visitas solidárias para perguntar como essas mulheres estão se sentindo, se estão em segurança, se alguém as ameaça.
Apesar do efetivo baixo para a demanda – só no ano passado, 12.892 moradoras do Distrito Federal recorreram à Justiça pedindo ajuda –, o programa é considerado exemplar. Em 2018, foram feitas 10.594 visitas, 2.363 pessoas acompanhadas (entre vítimas e agressores) e nenhum feminicídio foi registrado entre as mulheres protegidas pelo programa.
Apenas cinco batalhões não possuem equipe, mas, de acordo com a PM, em breve eles também terão o serviço. No final de março, uma turma de 40 voluntários passará pelo curso de um mês específico a fim de fazer parte do time.
“O Provid é excelente: ele fornece uma segurança muito importante para as mulheres, é baseado na filosofia da polícia comunitária e na aproximação com a população. Nós encaminhamos para eles os nossos casos mais graves e o índice de letalidade é zero”, diz a juíza Fabriziane Zapata, do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Riacho Fundo e uma das coordenadoras do Núcleo Judiciário da Mulher, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT).
Cada time é composto por quatro oficiais, e um deles deve ser do sexo feminino. Ao receber o processo e definir quem serão as vítimas protegidas, o Provid tem 48 horas para visitar a casa, explicar à mulher qual é a intenção do projeto e montar um plano de segurança para que ela saiba a quem recorrer em caso de perigo.
Nem sempre elas entendem de primeira a presença da polícia dentro de casa — mas, com uma conversa calma, costumam aceitar a ajuda. A partir daí, a visita é repetida de acordo com as peculiaridades da situação de cada mulher. Se a vítima corre risco iminente de vida, o policiamento pode ser diário, além das rondas.
O Metrópoles pegou carona em uma viatura para acompanhar o dia a dia de uma das equipes. No banco de trás do veículo do sargento França e do soldado Paiva, do 11º Batalhão da PM, em Samambaia, visitamos duas vítimas que fazem parte do programa de proteção.
Na primeira casa, a mulher não quis aparecer na porta. Não atendeu aos chamados dos policiais e enviou a filha pequena para avisar que estava tomando banho. Tímida, a pequena negou que o pai estivesse em casa, mas a situação intrigou os policiais.
O trabalho tem limitações: “Vamos voltar em outro momento, não podemos invadir um domicílio sem mandado. Nesse caso, os dois eram usuários de drogas e ela está em recuperação. Não sabemos se a vítima não quis nos receber por ter tido uma recaída ou porque o marido voltou”, conta Paiva. Ao ver a viatura, os vizinhos aparecem na porta para saber o que aconteceu e uma tenta ajudar os militares, relatando que não viu o agressor e nem escutou barulhos suspeitos.
Seguimos, então, para outra residência. Desta vez, a vítima nos recebe de portas abertas. Ela conta que o marido era ótimo, excelente pai, e ficaram casados por 13 anos. Mas, há cinco anos, o companheiro começou a usar drogas e se transformou. “Ele não era muito de me bater, mas destruía a casa inteira. Penso não só em mim, mas nos meus filhos”, diz. Durante um acesso de raiva do parceiro, ela se escondeu dentro de um banheiro e chamou os policiais por WhatsApp. “Fui salva por eles”, agradece.
França explica que o trabalho da equipe é a longo prazo e envolve meses de empoderamento da vítima, convencimento de que ela não precisa passar por situações de violência.
O agressor, se ainda estiver em casa, também entra na conversa: os militares falam sobre a Lei Maria da Penha, machismo, as consequências das ações e informam que a PM aparecerá a qualquer momento. “Não marcamos hora nem dia, para ele ter a sensação de que estaremos sempre perto”, ressalta Paiva.
No caso da segunda vítima, apesar de o acusado estar preso, as visitas continuam enquanto não sair a sentença, para garantir que ela consiga se manter. Sem a renda do marido, a mulher conta que ficou sozinha com quatro filhos para cuidar e não tem emprego fixo.
França e Paiva perguntam sobre as crianças e a escola, explicam como a rede de proteção pode ajudar e ensinam como a vítima pode conseguir cestas básicas e apoio. E, o mais importante, reforçam o quão corajosa ela foi e se colocam à disposição. No dia 11 de março, o agressor terá uma audiência na Justiça e pode ser libertado.
“A gente sempre tem aquela tristeza do que não conseguiu continuar. É muito difícil criar meus filhos sozinha. Eu tinha um ótimo marido, a gente tinha um plano familiar, fomos conquistando as coisas. Mas o que construímos foi destruído. Não é fácil lembrar que ele está preso, mesmo com tudo o que eu passei. Tudo falta na vida da gente. Quando a lágrima cai, ninguém fica por perto. Mas tenho medo de ele voltar”, conta a vítima. Enquanto ela se sentir ameaçada, o Provid seguirá acompanhando a família.
Experiência
De acordo com a Portaria PMDF nº 985, de 17 de novembro de 2015, que institui o Provid, cada equipe pode atender 25 casos por mês. Na prática, o número é maior. A viatura de França e Paiva, por exemplo, faz entre cinco e 10 visitas por dia na área de Samambaia e ainda tem uma pilha de pedidos a analisar.
Apesar da rotina pesada, os policiais do programa se sentem motivados por fazer a diferença na vida de famílias vítimas de violência doméstica. Um dos casos mais marcantes atendido pela dupla foi o de uma criança de quatro anos, que não falava devido ao trauma de ver o pai batendo na mãe diariamente.
Mesmo com acompanhamento, a vítima queria desistir, dizia que ninguém poderia ajudá-la. “Foi bastante tenso, fomos conversando, trabalhando para que ela aceitasse a nossa presença e se empoderasse. Eventualmente, a mulher precisou ser transferida para uma Casa Abrigo. Mas o filho voltou a falar. No final do atendimento, ele nos viu e disse: ‘polícia!’”, lembra Pavia, emocionado. “Pelo fato de a gente se aproximar da comunidade, é um trabalho muito gratificante”, diz.
O programa
A 1ª tenente Vilela é a coordenadora geral do Provid e chegou ao projeto em outubro de 2018. “Quando você conhece os policiais que estão fazendo isso há muito tempo, percebe a dedicação. Eles são profissionais excepcionais, envolvem-se. Em um atendimento emergencial, você vai uma vez, prende, resolve, acabou. No programa, o oficial volta várias vezes, são situações que vão além da segurança”, frisa.
A oficial explica que o projeto nasceu a partir de um trabalho com educação para adultos realizado pelo 8º Batalhão da PM, em Ceilândia. Durante a interação com os alunos, foram surgindo relatos de violência doméstica e a corporação percebeu a necessidade de criar um programa específico. “Hoje, trabalhamos em três eixos: o de ações preventivas, com educação e palestras; o de visitas solidárias, ronda e conversa com a vítima e o autor; e a articulação de rede, onde atuamos com outros órgãos para desenvolver parcerias e retirar a mulher do contexto de violência e da situação de vulnerabilidade”, detalha a tenente.
Muitas vezes, analisando o caso com o acompanhamento próximo dos envolvidos, surgem demandas e necessidades por parte da vítima: alguém para cuidar dos filhos, algum curso profissionalizante, atendimento psicológico, etc. A Polícia Militar, então, encaminha a mulher para quem possa ajudá-la.
A tenente Vilela relata ainda que o acompanhamento não é eterno e pode ser encerrado e retomado, de acordo com a situação de vulnerabilidade e segurança da vítima. “Às vezes, o agressor se afasta mesmo, ou é preso, está de tornozeleira, foi encaminhado para tratamento de vício em drogas ou álcool. Depende de cada caso”, salienta.
Neste 2019, o Metrópoles inicia um projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país. Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.