Tricô vira ferramenta poderosa de autocuidado na pandemia
Os trabalhos manuais se consolidaram como um instrumento de escape e superação em tempos de distanciamento
atualizado
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Cá estamos a caminho do 15º mês de pandemia de Covid-19. A essa altura, em meio a tantos medos, dúvidas e tristezas, manter o brilho no olhar e a capacidade de arquitetar planos futuros é um desafio quase unânime. É importante se agarrar a qualquer atividade que suspenda, ainda que provisoriamente, as angústias e incertezas que insistem em assolar o peito.
Quem diria que, no meio de todo esse caos, um par de agulhas, alguns novelos e uma dose generosa de empenho e paciência seriam a linha tênue entre a loucura e a sanidade para um bocado de gente? Muitas pessoas encontraram nos trabalhos manuais – sobretudo, durante a pandemia –, uma forma de distração e autocuidado. A prática alivia o estresse e a ansiedade, exercita a concentração e ainda permite desacelerar em tempos em que o mundo está tão apressado.
Viviane Basile atesta o aumento da procura pelas manualidades no último ano. Desde 2019, a jornalista e empreendedora é dona da Casa da Vivi, uma das principais lojas especializadas em fios, tecidos e acessórios para tricô, crochê e costura da capital, que também ministra aulas, cursos e oficinas.
“A ideia da Casa sempre foi ser um espaço de acolhimento, por isso esse nome. Queria receber as pessoas, servir um café, estar perto e tricotar com elas. Sempre acreditei nas atividades manuais como um trabalho coletivo”, afirma.
Com a crise sanitária, a agenda frenética de cursos precisou migrar, rapidamente, para o digital. Para a surpresa de Vivi, isso só fez com que as turmas crescessem. “Muita gente começou a tricotar conosco durante a quarentena. Começamos a agregar pessoas de fora de Brasília e a comunidade cresceu, firme e unida”, conta.
“Sempre acreditei nas atividades manuais como um trabalho coletivo”
Viviane Basile
Só durante o ano de 2020, desde o começo da pandemia, foram mais de 120 alunos matriculados em, aproximadamente, 30 turmas de cursos on-line ministrados pela Casa. “Em um momento de tanta tristeza e solidão, é muito gratificante saber que estamos proporcionando bem-estar para as pessoas por meio do tricô”, garante Vivi.
Reinventando o luto
Foi em uma dessas turmas que Vivi “esbarrou” com Camila Martins, uma de suas alunas. A jornalista, que já bordava, mora no Suriname há pouco mais de três anos, e embarcou na onda dos cursos on-line para aprender tricô, ainda no início da pandemia. “Tinha parado de trabalhar, dado à luz há pouco tempo e estava em um país onde não conhecia ninguém. As manualidades foram o início do que eu considero uma jornada de autoconhecimento. Encontrei nelas um lugar de calma e uma oportunidade de ter momentos só para mim – algo que é difícil quando temos filhos pequenos”, explica.
Em agosto de 2020, Camila perdeu o pai para a Covid-19. Morando longe de casa e impossibilitada de voltar para o Brasil, ela não pôde se despedir dele, nem contar ou oferecer suporte para a família durante o momento delicado. Então, mais do que nunca, se jogou no seu novo hobby.
“Foi aí que eu vi que o trabalho manual me deu uma comunidade e me salvou. Não conseguia pensar na minha perda sem desmoronar. Mas, ali, nos encontros on-line, eu tinha a sensação de que nada de ruim estava acontecendo”, recorda. “Não sei se vivi o luto da melhor forma, só sei que o tricô, sem dúvidas, me deu forças para que eu não parasse naquele lugar”, resume.
Camila constatou, da maneira mais difícil, os efeitos terapêuticos que as práticas manuais carregam. Graças a elas, a jornalista conseguiu reinventar a dor e superar o momento difícil que estava vivendo. “Encontrei, no tricô, um jeito de me refazer e de me reconectar, comigo e com as outras pessoas. A atividade te permite trabalhar coisas dentro de você com as quais, às vezes, você nem está sabendo lidar”, reflete.
Tecendo uma rede de apoio
Recentemente, a arquiteta e artista plástica Alessandra Louçana também descobriu, nas manualidades, um caminho de reaproximação e resgate de suas raízes. Para ela, as agulhas sempre foram sinônimo de casa, calor e segurança, principalmente, por causa da avó tricoteira, com quem viveu durante a infância, em São Paulo. Há 15 anos, a neta de dona Nena mora em Roraima com o marido e os filhos.
Apesar de já ter certa afinidade com o bordado e o crochê, Alessandra nunca tinha se arriscado no tricô. O confinamento foi a oportunidade que lhe faltava para se reconectar com a atividade ancestral. “Já estava enjoada de pintar. Decidi, então, buscar os talentos manuais que estavam adormecidos em mim. Na verdade, foram eles que me chamaram”, ri.
Quem deu à arquiteta as boas-vindas a esse universo foi a Potira, um coletivo brasiliense de manualidades que busca recuperar o costume de mulheres se reunirem em círculo para tricotar e compartilhar saberes e experiências. “Nosso objetivo é criar uma rede de apoio de mulheres e resgatar a essência feminina, que é coletiva”, afirma a professora e artesã Rachel Bessa, há mais de 20 anos à frente da iniciativa.
Com um dos projetos mais populares do coletivo, O Manto, Rachel conduz as parceiras em uma jornada de investigação interna e autoconhecimento. Durante cinco luas, cada mulher tece seu próprio manto, enquanto leem, em grupo, o clássico literário de Clarissa Pinkola, Mulheres Que Correm Com Os Lobos. “São mulheres se redescobrindo, percebendo seus ciclos e aferindo como precisamos umas das outras”, elabora a empreendedora.
Coincidentemente, o manto foi a primeira peça tricotada por Alessandra. Além das trocas valiosas que pôde ter com as mulheres durante os encontros on-line, a artista plástica garante que a trama também serviu para driblar um pouco a saudade que está do calor dos abraços e da família, que mora longe. “Fiquei feliz em ter descoberto esse novo mundo”, encerra.