Mudanças na legislação beneficiam autistas e suas famílias
Lei vai criar Carteira Nacional de Identificação e Censo de 2020 deve incluir TEA no questionário. Ações ajudam a diminuir invisibilidade
atualizado
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Segundo a Organização Mundial da Saúde, o autismo afeta uma em cada 160 crianças no mundo. A incidência é relevante, mas, até 2019, não havia motivado institutos de pesquisas brasileiros a investigarem a ocorrência do chamado Transtorno do Espectro Autista (TEA) no país.
Sem estudos estatísticos, o Brasil não sabe quantas pessoas têm autismo, muito menos quantas já têm diagnóstico. Uma realidade que pode mudar em breve, mas que ainda invisibiliza os portadores do transtorno e alimenta o preconceito.
Neste mês, o Senado aprovou a lei Romeo Mion, batizada com o nome do filho mais velho do apresentador Marcos Mion, um dos principais ativistas na defesa dos direitos de pessoas com autismo. Entre as determinações da lei, está a criação e o oferecimento gratuito da Carteira Nacional de Identificação do Autista, com validade em todo o território nacional.
“Vocês tem noção do quanto isso significa? Mais uma vez, Romeo vai impactar positivamente a vida de milhares de pessoas que ele nem conhece. E já teve gente que olhou pra ele com desprezo, como um incapaz. Ou, como ouvi uma vez, ‘ele veio quebrado’. Ele agora será lembrado pra sempre, dando dignidade, reconhecimento e acesso para todos com TEA”, comentou o artista.
Preconceito
Quem convive com o autismo na família sabe bem como a capacidade das pessoas com o TEA costuma ser subestimada ou incompreendida.
Nesta semana, a produtora cultural Tâmara Habka fez um desabafo emocionado no Instagram, após ter recebido a negativa de uma tradicional escola de filosofia internacional, com unidades em Brasília. “Hoje, está sendo mais um dia desses muito difíceis para quem está cansado dessa falácia da inclusão, do respeito mútuo, da ética”, disse.
Segundo a moradora do DF, ela procurou a escola para matricular a filho Heitor, portador do espectro, em um grupo jovem em que a filha mais velha já participava.
No entanto, ouviu que a escola não tinha condições de atender o adolescente, mesmo sem uma avaliação prévia sobre suas habilidades e limitações. “Me removeram do grupo de pais em seguida”, reclamou.
A Nova Acrópole alega que houve uma falha no procedimento padrão por parte do responsável pelo atendimento. “Temos casos de alunos autistas e com outras necessidades especiais em nossas unidades e projetos infanto-juvenis. Em todos eles, com a parceria e o acompanhamento da família. O correto seria o voluntário me informar para que eu avaliasse junto à mãe as possibilidades e recomendações”, justifica a diretora da unidade do Lago Norte, Julia Camarotti.
De acordo com a porta-voz, todo o trabalho desenvolvido na escola é voluntário. No momento, poucos têm capacitação para atender pessoas autistas. “Estamos abertos a receber pessoas dispostas a nos ajudar a realizar esse sonho de atender a todos”, pondera.
Após o ocorrido, a escola procurou a família para conversar, mas o episódio desanimou Tâmara e Heitor. “Não pretendo retornar porque a rejeição foi muito forte. Mas o Heitor e outros jovens com o espectro precisam crescer em grupos, e me preocupa muito essa discriminação e medo de que não sejam capazes de acompanhar ou que vão dar trabalho”, pontua Tâmara.
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Educação é direito
Especialista no tema, o presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Autismo da Seccional da OAB/DF, Edilson Barbosa, afirma que o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em vigor há quatro anos, também se aplica a pessoas com TEA e não comporta exceção ao caso por se tratar de uma organização sem fins lucrativos.
“A instituição precisa oferecer turmas reduzidas, se for o caso, conteúdo programático adaptado. Não se pode privar uma criança de um direito”, explica o advogado.
Edilson conheceu de perto a importância da educação no desenvolvimento de crianças autistas. Ele é pai de Vinícius, que também é portador da síndrome e, aos 15 anos, acaba de ser aprovado no vestibular para Direito. “Era pra ser só um teste, mas passei. Estou muito feliz e vou continuar estudando, pois quero ser aprovado no concurso do Senado”, planeja o rapaz.
Suporte de terapeutas
Diferentemente de outros tipos de deficiência, o autismo “não tem cara”. Os sinais do espectro mudam em cada portador. Devido a essa questão, o casal Cíntia Rogner (foto em destaque) e André Lima diagnosticou o TEA no pequeno Fábio somente aos três anos de idade, dois anos atrás. À época, tiveram dificuldade, já que as limitações, segundo o pediatra, poderiam ser atrasos normais de desenvolvimento.
Fábio não se comunicava com as demais crianças e tinha atrasos na fala. Em contrapartida, desenvolveu outras habilidades de forma precoce. “Aos três anos, percebemos que ele sabia ler, embora não interagisse muito. Também não obedecia quando chamávamos e, em lugares com espaços livres, corria muito. Eu acreditava ser uma mãe incompetente”, lembra Cíntia.
Em uma sexta-feira anterior ao Dia das Mães, ela recebeu o diagnóstico do neuropediatra. “Fiquei dias chorando. Tudo o que eu sabia era que teria um longo caminho com terapias para tentar habilitar e dar uma vida funcional ao meu filho, sem nenhuma garantia.”
Foi nessa época que ela ingressou em um grupo no Whatsapp chamado Berçário Azul, em que mães de Brasília trocam informações a respeito do tema. “Me ajudou muito”, diz a mãe.
Dois anos após o diagnóstico, Fábio se desenvolve bem, sem o uso de remédios. Ao todo, tem cinco terapeutas integrados e coordenados pela psicóloga. Na escola particular em que estuda é bem acolhido pelos colegas, que atribuíram a Fábio o “superpoder” da leitura. Toda vez que não conseguem identificar uma palavra, recorrem ao pequeno, que tem essa habilidade muito bem aperfeiçoada. Um cenário que a própria família chama de “Disneylândia“.
“O Fábio tem um espectro leve e, ainda assim, gastamos uma pequena fortuna para que ele tenha acesso a esse suporte. E é incrível como cada um desses profissionais ajudou o Fábio a evoluir nesses dois anos. Ficamos muito tristes ao pensar que essa não é uma realidade possível a todas as famílias”, salienta o pai.
Acesso a políticas fazem diferença
Ana Karine Bittencourt vive uma situação mais complexa. Seu filho Rafael, de 11 anos, tem um espectro mais grave, com episódios de epilepsia. Para controlar as reações, ela precisa importar a medicação da Inglaterra, procedimento que ficou mais fácil com avanços na legislação. “De 100 convulsões, diminuiu para duas, quatro. Também trabalho no Ministério Público, onde usufruo de horário especial para estar com ele”, explica.
Apesar de não nutrir expectativa de que os demais aprendam a lidar com o caso do filho, ela defende que as escolas, instituições e serviços se adequem as necessidades da pessoa com autismo.
“Quando a criança tem dificuldade de permanecer sentada, por quê não ensiná-la em pé, em movimento, com recursos visuais? É claro que aprender a sentar é importante, mas esse aprendizado pode vir de outra forma”, defende.
“Se tiver que primeiro aprender a sentar para depois aprender a ler, a situação pode não sair do lugar. É como você dizer pra uma pessoa cadeirante: enquanto você não manejar sua cadeira perfeitamente não pode frequentar locais públicos”, continua Ana.
Leis chegam para aumentar acesso
Na opinião de famílias ouvidas pelo Metrópoles, alguns eventos ocorridos em 2018 devem contribuir para mudar o cenário de exclusão em que muitos autistas ainda estão inseridos.
Além da norma recém-aprovada pelo Senado, a Romeo Mion, Edilson Barbosa lembra a Lei 13.861/19. Sancionada em julho deste ano, lei federal determina que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) passe a inserir no Censo 2020 perguntas sobre o autismo. Com isso, será possível saber quantas pessoas no Brasil apresentam esse transtorno e como elas estão distribuídas pelo território.
“A Carteira Nacional vai permitir que o portador se identifique e tenha acesso a seus direitos, como pessoa autista e como portador de deficiência já que a condição não está estampada. E a determinação de que o Censo de 2020 inclua o autismo no questionário vai permitir que se mensure a quantidade de pessoas que precisam de políticas nesse sentido. Hoje, quando vamos cobrá-las, a ausência desse dado é usado como desculpa. A partir do ano que vem não será mais”, finaliza.