“Stealthing”: remover a camisinha durante o sexo é crime?
O ato é considerado análogo a estupro em alguns países, mas no Brasil é tratado com descaso
atualizado
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Ana* foi vítima de stealthing. O nome em inglês significa roubar ou dissimular, e se refere ao ato de remover a camisinha durante o sexo sem o consentimento ou conhecimento da parceira. A prática é considerada análoga a estupro em alguns países, como a Suíça, mas a história de Ana ilustra o descaso no Brasil diante da violação.
“As primeiras vezes que me relacionei com esse homem, ele insistiu muito para não usar camisinha”, diz a jovem. O rapaz continuou tentando persuadir Ana a fazer sexo sem proteção, mas ela negou todas as vezes. “Verbalizei que, se ele não quisesse usar preservativo, a gente nem transaria e tudo bem por mim”, afirma.
Quando Ana o encontrou pela última vez, o homem concordou em usar proteção. Mas, durante o sexo, a jovem reparou que a camisinha tinha saído. Ana o confrontou e, depois, percebeu o acontecido. “Fiquei em estado de choque, sem falar uma palavra. Estava parada e pensando como iria lidar com aquela situação absurda. Enquanto isso, ele começou a se defender sem parar”, conta.
A jovem foi embora e parou no meio do caminho. “Comecei a gritar e chorar. Eu me sentia violada e desesperada. Fui tomar a pílula do dia seguinte. Dormi umas horas e acordei antes do meu despertador, chorando. Estava deprimida”, lembra.
Por mensagens, Ana foi importunada pelo rapaz. “Ele me acusava de ser louca e de estar inventando tudo. Afirmava ter descoberto da camisinha junto comigo”. Ela escolheu denunciar e, no dia seguinte à violência, foi à delegacia: “O agente policial me disse que, pela lei, o ocorrido é considerado ‘babaquice’ e deve ser resolvido entre o casal”.Ana foi informada que não poderia denunciar, porque stealthing não se encaixaria em outro crime. “Segundo o agente, se eu tivesse ido com menos de 24 horas na delegacia, teriam feito exames para provar penetração sem camisinha e, talvez, isso servisse como prova para alguma ação futura, mas dificilmente configuraria como contravenção e não estava mais no prazo de fazer esses procedimentos”, fala.
Crime
A advogada Déborah Mesquita informa que não existe uma previsão específica para stealthing entrar na legislação brasileira. “Entretanto, o agressor pode ser condenado de 2 a 6 anos de prisão pela prática do crime de violação sexual mediante fraude, expresso no artigo 215 do Código Penal”, diz.
Além disso, o agressor pode ser enquadrado nos artigos 130, 131 e 132 do Código Penal. A advogada orienta procurar a Delegacia da Mulher e fazer um boletim de ocorrência. “O ideal é não fazer nenhum tipo de profilaxia antes de conversar com uma autoridade policial e realizar o exame de corpo de delito”, indica. Déborah recomenda essa ordem de procedimentos para não remover os vestígios deixados e impossibilitar punição do agressor.
Violação
No estudo “Rape-Adjacent: Imagining Legal Responses to Nonconsensual Condom Removal” (algo como “Adjacente a estupro: imaginando respostas legais à remoção não consensual de camisinha”) foi uma das primeiras vezes que se falou sobre a prática e uma possível criminalização. Nele, a autora Alexandra Brodsky traz à tona os danos físicos e morais sofridos pelas vítimas entrevistadas.
“Independentemente de ser análogo ou não, precisamos reconhecer o quanto essa é uma prática violenta. É uma violação sexual que, além de todas as implicações de confiança e respeito, coloca em risco a integridade física da mulher. Isso é algo muito grave”, opina a feminista e psicóloga Daiana Rauber.
“Com base nos inúmeros relatos, podemos dizer que é frequente, mas, até pouco tempo, a prática não tinha um nome específico”, diz. De acordo com Daiana, nomear traz benefícios para a vítima, como entender melhor os sentimentos sobre o abuso e desnaturalizar o ato. “Apesar de a relação ter sido consentida, ela o foi mediante alguns termos e não a qualquer custo”.
Segundo a psicóloga, o stealthing mostra o quanto os homens ainda precisam ser educados sobre consentimento. “O que faz alguém pensar que não necessita de permissão clara para tomar qualquer atitude relacionada ao corpo alheio?”, indaga. “Estamos nos referindo a uma série de comportamentos considerados aceitáveis por um grupo de pessoas, isso torna a questão cultural e de gênero”.
*Nome fictício para proteger a identidade da entrevistada