Vamos falar sobre bullying: problema que atinge 150 milhões de jovens
As vítimas podem desenvolver doenças psíquicas, como a depressão, chegando até a pensamentos suicidas
atualizado
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O bullying nas escolas é um problema que acomete crianças e adolescentes de todo o mundo e preocupa pais e educadores. Levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Unicef, publicado no início do mês, revelou que metade dos adolescentes entre 13 e 15 anos, cerca de 150 milhões de meninos e meninas, sofre violência corporal ou psicológica, por parte dos colegas, dentro e no entorno das escolas.
O Metrópoles conversou com psicólogos, pedagogos e diretores de escolas públicas e privadas do Distrito Federal para entender como o bullying se manifesta nas instituições de ensino e a que sinais os pais devem ficar atentos.
A psicóloga da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEDF) Gabrielle Jesus explica que o bullying é um comportamento aprendido e socialmente validado, ou seja, não é nato do ser humano. Ele está ligado à cultura em que a criança está inserida e começa a ser praticado por meninos e meninas a partir dos seis anos.
As vítimas tendem a se tornarem mais isoladas e, consequentemente, não querem ir para a escola. Foi o caso de Gustavo do Vale Ferreira, atualmente com 14 anos. Quando sofreu bullying, o menino tinha apenas sete. Os três primeiros meses no novo colégio são lembrados até hoje pela mãe, Carolina Castro do Vale Ferreira, 39 anos, como um período difícil para o garoto.
Gustavo era perseguido por colegas de sala. Eles pegavam seu lanche na hora do intervalo, escondiam suas chuteiras e, em uma ocasião, chegaram a insinuar que a cabeça de Gustavo seria colocada no vaso sanitário. “Tentava evitar ir à escola porque ficava com medo que pudesse acontecer de novo”, lembra.
A mãe conta que tudo começou quando Gustavo mudou de escola para cursar o ensino fundamental. Até então, o filho era um menino alegre, brincalhão e seu comportamento mudou completamente entre fevereiro e abril de 2011.
“Ele passou a evitar o colégio, mas não revelava o motivo. Todo dia inventava que estava doente e começou a ficar muito calado. Na época, eu não sabia onde estava o problema e imaginava que pudesse ser em casa”, recorda a mãe. Além do comportamento, Gustavo desenvolveu um tique nervoso: os olhos e a boca piscavam involuntariamente.
Carolina lembra que, na época, chegou a participar de mais de 20 reuniões com diretores e coordenadores da escola em que o filho estava matriculado a fim de tentar descobrir o motivo da mudança de comportamento da criança. Sempre escutava a mesma resposta: ela deveria se acalmar e ter paciência porque a ansiedade era algo comum no período de adaptação em um novo espaço.
“Sempre ouvi que o bullying era um problema que as pessoas sofriam caladas, mas não acreditava. Em uma família com diálogo, isso não aconteceria, até sentir dentro da minha casa”.
Carolina Castro do Vale Ferreira
O menino participou de sessões de terapia, mas só se abriu quando a mãe resolveu matriculá-lo em outra escola. “A orientadora ligou dizendo que ele não estava bem e febril. Quando cheguei lá, vi meu filho sozinho, me esperando. Foi a gota d’água. Ele me contou que estava sofrendo perseguição de outros meninos da sala”. Mudar de escola foi a paz da vida de Gustavo e o menino se transformou da noite para o dia, mas os tiques nervosos ainda persistiram pelos quatro meses seguintes.
A professora doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB) Angela Uchoa Branco afirma que pais, professores e diretores das escolas devem trabalhar em conjunto para combater casos dessa natureza.
Os pais precisam estar atentos ao comportamento do filho em relação à escola. Os professores devem ficar de olho na dinâmica da sala de aula, intervir cuidadosamente e ter tolerância zero com o bullying – conversar, ouvir e argumentar com os alunos sobre cultura de paz. Aos diretores, cabe orientar os educadores e buscar a resolução pacífica de conflitos.
Gabrielle Jesus explica que, raramente, os agressores sofrerão alguma sequela. “Eles se acham poderosos e não sentem culpa”, afirma. No entanto, os pais também devem ficar atentos ao comportamento dos filhos e observar se as crianças têm o costume de repetir as brincadeiras e discriminações reproduzidas pelos amigos.
O relatório da Unicef descreve uma variedade de maneiras pelas quais estudantes enfrentam a violência nesse contexto. Embora meninas e meninos tenham o mesmo risco de sofrer bullying, os meninos têm chances maiores de sofrer violência física e ameaças, como Gustavo sofreu, enquanto as meninas são mais propensas a serem vítimas de formas psicológicas de bullying.
As vítimas podem desenvolver doenças psíquicas, chegando a ter pensamentos suicidas, como explica a psicóloga. A estudante Débora Dálet, 21, passou por todos os estágios de depressão quando cursou o 9º ano, aos 14 anos. A jovem era perseguida por um colega de turma que a apelidava com nomes nada agradáveis, como baleia e javali.
Débora chegou a comentar a respeito de alguns episódios de violência sofridos no colégio, mas a mãe acreditava que mudar a adolescente de escola não iria resolver o problema. “A minha mãe dizia que isso acontecia em todo lugar e eu precisava ser forte”. A menina cursou o ensino médio em outra escola.
Somado aos xingamentos, o agressor incentivava outros alunos a jogarem bolinhas de papel na colega de sala. Um dos acontecimentos lembrados com muita dor por ela foi quando o rapaz jogou chiclete em sua cabeça. “O meu cabelo era na cintura. Fui a um salão, mas não teve jeito, precisaram fazer um corte joãozinho. Foi aí que o bullying piorou”. A solução encontrada pela escola para punir o responsável foi a suspensão.
Na época, ela pesava cerca de 80kg e passou a ter comportamentos de bulimia, até chegar aos 45kg. Os pais perceberam que a adolescente comia e logo ia para o banheiro vomitar. Foi aí que eles decidiram levá-la a uma psicóloga.
A situação se agravou quando Débora tentou cometer suicídio. Foram diversos eventos – ela carrega as marcas dos cortes que fez no próprio corpo ainda hoje – até ser socorrida, às pressas, e seguir para o hospital. “Fui a um psiquiatra e ele me receitou antidepressivos e remédios para dormir. Acordava com medo de ir para a escola”, lamenta, com a voz embargada.
Sete anos depois, Débora acredita que está em outra fase da vida, com foco nos estudos. Ela segue fazendo acompanhamento psicológico e ainda não se sente à vontade com a própria imagem. “Não aceito ser gordinha. Ainda me sinto feia”, completou.
A psicóloga afirma que é obrigação da escola desempenhar trabalhos em conjunto com orientadores e pedagogos para que o bullying seja coibido. A Secretaria de Educação do Distrito Federal desenvolve, ao longo de todo o ano letivo, projetos pedagógicos acerca de temas como cidadania e direitos humanos, mediação de conflitos, combate às drogas, entre outros assuntos, com o objetivo de prevenir e combater a violência.
A diretora da Escola Classe 204 Sul, Alessandra Alves de Oliveira Lopes, lida com crianças de seis a 12 anos há duas décadas. Ela lembra que o desrespeito, a intimidação e a apelidagem existem desde que iniciou o trabalho na educação. Os valores são trabalhados de forma gradativa com os estudantes, dentro da proposta pedagógica. As crianças aprendem o que é respeito por meio de aulas, palestras e filmes.
O centro educacional Sigma é pioneiro com a implantação da disciplina Convivência Ética. Estudantes de 71 turmas da escola participam das aulas duas vezes por semana desde o primeiro semestre de 2017, sob supervisão da professora Áurea Bartoli. Atualmente, 20 docentes de diferentes matérias estão capacitados para trabalhar a Convivência Ética. Os estudantes são incentivados a participar com a sugestão de temas.
O Metrópoles conversou com a supervisora e quatro alunos do 8º e 9º anos do ensino fundamental para entender, na prática, como eles encaram a disciplina e o bullying. Fica evidente nos comentários de Arthur Henrique Silva Pinho, 15, Isabela Koshino, Isabella Maryan, as duas com 14 , e Clarisse França, 13, que a disciplina dá a eles poder de fala e decisão. São jovens empoderados.
Isabela Maryan lembra de um caso recente, em que viu uma colega de sala ser discriminada. Ela e outras duas amigas contrárias à prática levaram o tema para a sala de aula. As adolescentes pesquisaram o conceito de bullying e fizeram uma apresentação para a turma, explicando os tipos de agressão e alvos comuns. “Geralmente são pessoas com linguagem passiva. A gente trouxe esse assunto e conseguiu resolver na aula, parando o bullying com a menina”, explicou.
Clarissa lembra que sofria discriminação por ser considerada muito baixinha. Era normal o agressor excluí-la das brincadeiras em grupo, por exemplo. “Nunca levei isso a sério porque sempre fiz piada de mim mesma. Foi assim que o meu pai me ensinou a me defender”.
A menina de apenas 13 anos demonstra segurança e maturidade de gente grande. Ela entende que a altura não é motivo para se envergonhar, assim como qualquer outro relacionado à aparência. “Nunca me senti humilhada, porque sei que não é culpa minha. Não posso fazer nada sobre isso”.
Isabela Koshino entende, por vezes, que a vítima não tem real proporção da gravidade das agressões e sofre em silêncio. “Achava normal eles me zoarem por eu não ser magra nem alta. Hoje, entendo que não tem nada de errado comigo”, pontua. A adolescente acredita também na importância de se cercar de pessoas que fazem bem para ela. A opinião é comum no grupo.
Isabela Maryan acredita que conversar com um amigo pode ser mais fácil do que com os pais e diretores. O diálogo é equiparado, sem julgamentos. “Os amigos veem tudo, eles estão presentes no dia a dia e, às vezes, os pais não sabem”, ressalta.
Arthur compreende que a disciplina deu responsabilidades aos alunos. Hoje, eles sugerem os temas que querem abordar e têm mais liberdade para falar com os professores. Segundo Áurea, o objetivo é construir a autonomia moral dos adolescentes. “Eles desenvolvem pensamentos como ‘O que eu posso?’, ‘O que quero?’ e ‘O que devo?'”, completou.
O programa teve origem em escolas da Espanha há 16 anos. As ações em relação ao tema começaram em 2016, com alunos do 1º ano do ensino médio e 9º ano do fundamental para discutir problemas de convivência da escola e temas estudados por eles em outras disciplinas, como a descriminalização do aborto.
Áurea faz questão de enfatizar que a escola não levanta discussões acerca de políticas partidárias e religião por entender que, primeiro, precisa ser construído um viés de respeito para que alunos estejam aptos a discutir sobre qualquer assunto.
O trabalho de conscientização do bullying deve ser feito com o alvo, os autores e os expectadores. “O bullying é um problema moral. Se acho que posso zoar o outro sem limites, a vítima não tem forças para lidar sozinha e tenho espectadores, gente que ri, isso só aumenta”, segundo a supervisora. “Nós não queremos que eles saiam da escola aceitando tudo o que acontece”, completa.
Assim como Gustavo e Débora, muitas crianças têm vergonha ou medo de falar sobre o assunto com pais e docentes. Por isso, especialistas alertam para que a família preste atenção a alguns sinais que podem indicar que a criança ou adolescente esteja sofrendo bullying:
Fique atento a mudanças no comportamento e humor da criança: mais isoladas e chorosas, por exemplo;
Observe se ela pede para faltar aula com frequência: “Fique alerta se ela disser que não quer ir para a aula, algo pode estar acontecendo”, ressalta a diretora da Escola Classe 204 Sul, Alessandra Alves de Oliveira;
Seu filho tem medo de ir para a escola? Em alguns casos, a aproximação do início de uma nova semana ou ano letivo são suficientes para que a criança fique ansiosa;
Participe da vida escolar de seu filho: fique atento à agenda e mochila da criança;
Frequente a escola e converse com os professores.