Sinal de alerta: especialistas condenam banalização da cirurgia plástica
Após morte de influencer, busca por padrões de beleza irreais evidenciaram os perigos de procedimentos estéticos invasivos
atualizado
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Basta alguns minutos navegando nas redes sociais para se deparar com milhares de imagens que, teoricamente, retratam o corpo dos sonhos, musculoso, bronzeado e, geralmente, inalcançável a maior parte da população. A comparação com a timeline pode desencadear uma vontade irracional de atingir a perfeição, mesmo que isso signifique se submeter a um procedimento cirúrgico invasivo.
De acordo com o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), Denis Calazans, antes de partir para a intervenção médica, é preciso que haja uma avaliação ampla do paciente, incluindo o psicológico, além da anatomia e reação do organismo a possíveis complicações.
“A cirurgia plástica é um tratamento médico e, como todo tratamento médico, deve ser realizada por um profissional qualificado, dotado de título de especialista e através do diagnóstico de uma necessidade. Nunca por um modismo”, ressalta Denis, em entrevista ao Metrópoles.
Um dos maiores difusores em massa de comportamentos e crenças são justamente as redes sociais. Apesar de ser um espaço democrático de expressão de opinião (o que não significa passe livre para discurso de ódio), o espaço na web promove o cultivo de padrões e “modismos”, como a recente lipo lad.
Com mais de 15 anos na área, o médico Alan Landecker, membro titular da SBCP, elenca que a venda do milagre a partir do bisturi é impulsionada pela manipulação digital de fotos de antes e depois. Ele revela que já atendeu famosos que tinham a aparência muito diferente da compartilhada com os seguidores, caracterizando uma desonestidade com o público.
Alan salienta que compartilhar resultados de cirurgias plásticas na web é uma prática positiva, no sentido de que pode mostrar ao paciente o trabalho do médico e que tipo de situação pode ser obtida em casos parecidos. “Não é saudável, porém, na intenção de criar a expectativa de que o paciente vai ficar igual”, afirma.
Relação com o espelho
De acordo com a psicóloga Daniele Quirino, membro da healthtech Amparo Saúde, as redes sociais têm participação incisiva na construção da autoestima das pessoas, sobretudo daquelas que acompanham perfis que veiculam uma vida perfeita.
“Muitas vezes, são maneiras de viver irreais. Dificilmente vemos o dia a dia e as dificuldades”, afirma a especialista. “Quase ninguém se mostra como realmente é”.
Segundo Daniele, a autoaceitação é uma das formas de prevenir que o ambiente externo afete a visão sobre si mesmo e gere uma busca desenfreada por padrões. No entanto, ela pondera que a abordagem é mais ampla do que apenas amar-se.
“Não é uma ação isolada, não é um conceito tão simples. É a definição de várias ações e posicionamentos em relação a si mesmo”, explica a psicóloga, que divide o termo em três tópicos: autoconsciência, autorrespeito e autocuidado.
Confira a definição de cada um dos pontos:
- Autoconsciência: “É o saber quem sou, saber como sou, o que eu gosto ou não gosto”, elucida Danielle.
- Auto respeito: a definição provém das respostas ao tópico anterior. “O que é importante para mim e o que não é? Realmente preciso me sujeitar a exposição para agradar quem está de fora? Preciso me sujeitar ao desejo do outro em detrimento do meu?”, indaga.
- Autocuidado: por fim, é cuidar de si como alguém digno de atenção. “Isso inclui desde pensar na saúde física e mental até analisar riscos antes de se submeter a algo tão sério como a cirurgia plástica”, completa a psicóloga.
Daniele explica que, ao estar munido de autoaceitação, ter contato com padrões externos não afeta tanto a visão sobre si. “A comparação com quem está de fora é muito cruel. Cada um tem uma realidade diferente do outro”, diz.
“Todo ser humano é passível de evolução, logo, podemos nos inspirar em outras pessoas para provocar nossa evolução. A comparação, em si, pode causar adoecimento”, ressalta a psicóloga.
Se a percepção dos defeitos e busca por se encaixar em um padrão seguir latente, a especialista recomenda a procura por tratamento especializado. Ter uma visão de si totalmente diferente da que é mostrada no espelho é uma das características do transtorno dismórfico corporal (TDC).
Casos famosos
O debate acerca da busca por um padrão de beleza a partir de uma intervenção cirúrgica se desencadeou após a morte da influenciadora Liliane Amorim. Ela fez uma lipoaspiração no dia 9 de janeiro e, uma semana depois, foi internada em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em Juazeiro do Norte, no Ceará. No sábado (23/1), o estado de saúde se agravou devido à sepse – infecção generalizada – e, um dia depois, a jovem de 26 anos morreu.
O óbito de Liliane fez com que outras personalidades públicas se posicionassem sobre a adesão a cirurgias plásticas. Em um vídeo de desabafo, a digital influencer Thaynara Og revelou que também precisou ser internada na UTI depois de uma lipo, em março do ano passado.
“Sempre tive vontade de falar com vocês sobre, mas não tinha coragem, um pouco de receio e vergonha. Mas, hoje, tenho que contar sobre isso. Apesar de atender muitos padrões de beleza, sinto uma pressão estética sobre mim. Tenho minhas inseguranças, minhas insatisfações com meu corpo”, começou.
Assim como muitas pessoas da “vida real”, a youtuber reconheceu que se sentiu “seduzida” pela técnica usada pelo cirurgião que decidiu escolher. “Acho que de tanto ver no Instagram, decidi fazer aquela técnica famosa que várias influenciadoras estavam fazendo. A técnica dele me seduziu, eu achei lindo. Na minha cabeça seria maravilhoso para mim também”, afirmou, se referindo a lipo lad, também conhecida como lipo HD.
A decisão se transformou em um episódio de terror para Thaynara e sua família durante o pós-operatório. “Nunca mais eu quero voltar para aquilo”, desabafou. A influenciadora ficou hospitalizada entre seis e sete dias, sendo a maior parte deles na UTI.
“Eu sei que intercorrências acontecem, mas o que mais me deixou mal foi que o dia que eu senti mais dor, e eu não conseguia dormir nem mesmo com muito remédio, eu não conseguia entrar em contato com o meu cirurgião. Sabe quando a pessoa marca uma cirurgia atrás da outra, eu não acho isso correto. Me senti culpada, presa naquela cama me perguntando por que fiz isso comigo”, disse.
Levantamento do (M)Dados, núcleo de jornalismo de dados do Metrópoles, revelou que, desde 2010, 217.481 brasileiros se submeteram a lipoaspiração a cada 365 dias. Quase 596 a cada 24 horas, com base nos balanços da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica (Isaps). Esse tipo de intervenção fica em segundo lugar no ranking com outros procedimentos estéticos, desbancado apenas pela colocação de prótese de mama.
Ciência e responsabilidade
O desabafo de Thaynara e o falecimento de Liliane levantaram questionamentos sobre a atuação dos cirurgiões plásticos. O presidente da SBCP afirma que profissionais ruins não representam a especialidade e que a grande maioria dos atuantes no ramo busca o melhor para o paciente. Segundo ele, a competência dos profissionais brasileiros é reconhecida internacionalmente.
Dados de 2018 da SBCP mostram que o Brasil é líder na realização do procedimento em todo o mundo, à frente de nações como Alemanha e Estados Unidos. “É um verdadeiro celeiro científico da cirurgia plástica”, pontua o presidente.
A sofisticação do conhecimento e técnica brasileira, no entanto, não significa que o procedimento é naturalizado como algo passível de realização cotidiana. Alan Landecker explica que, ao contrário do que se imagina, a cirurgia plástica não deve ser banalizada, tampouco os riscos que ela promove ao paciente.
“A cirurgia plástica é uma especialidade muito séria, em que existem riscos de complicações que podem ser impossíveis de corrigir. A cirurgia só pode ser feita em último caso, sempre em condições ideais, por um superespecialista naquilo que o paciente deseja e se houver um incômodo muito significativo com a área do corpo”, alerta Alan.
Segurança
Por fim, o presidente da SBCP garante que segurança é uma premissa irrenunciável de todos os cirurgiões plásticos brasileiros. “A busca desses profissionais deve ser através de meios oficiais ou de conhecimento próprio, nunca se guiando através de mídias sociais. O número de likes de determinado post ou número de seguidores em determinada mídia social, não é atestado de competência profissional”.
Ele ressalta que o marketing médico é “absolutamente bem-vindo”, desde que realizado dentro de parâmetros éticos. Em 2018, as mídias sociais mais utilizadas profissionalmente pelos cirurgiões plásticos eram o Instagram, com 62% de adesão, seguido pelo Facebook, 58,4%, e Whattsapp, 55,5%. A pesquisa da SBCP daquele ano mostrou também que 19,7% dos entrevistados não utilizam nenhuma.
O Conselho Federal de Medicina determina que o médico deve evitar sua autopromoção e sensacionalismo, preservando a postura profissão, conforme o artigo 9 da resolução 1.974/11. Também é proibido a publicação nas mídias sociais de conteúdo que caracterizem sensacionalismo, autopromoção ou concorrência desleal.
“A competência profissional de cada médico dispensa por completo a necessidade de uma pessoa ligada ao marketing para comprovar os seus bons resultados. Esse tipo de parceria é detestável e repudiada pela boa medicina e pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica”, finaliza.