Saiba como fazer seu relacionamento on-line resistir à pandemia
Com o agravamento da situação no país e sem perspectiva de encontro seguro, especialistas ponderam as mudanças nas relações virtuais
atualizado
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“Hoje, os relacionamentos escorrem por entre os dedos”, escreveu o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Em sua análise sobre a realidade pós-moderna, o filósofo apresentou ao mundo o conceito das relações líquidas, que respondem ao modelo de fluidez individualista. “Os telefones celulares nos ajudam a ficarmos conectados àqueles que estão a grandes distâncias. Mais do que conectar, os celulares permitem preservar essa distância”.
O que o pensador moderno provavelmente não previu foi que o surgimento de uma crise de saúde global como a pandemia de Covid-19 tornaria tal distanciamento algo extremamente necessário. Com o isolamento, as relações virtuais passaram a ter um novo desdobramento: ganharam um “quê” de realidade.
A tecnologia, antes inimiga dos relacionamentos físicos e das “trocas verdadeiras”, ganhou protagonismo. Em encontros on-line ou intermináveis ligações de vídeo, os namorados recorrem aos dispositivos eletrônicos para dar uma pausa na saudade da quarentena. Porém, o isolamento social e as mudanças nas dinâmicas estão impactando não apenas os casais, mas também os solteiros.
Essa foi a chance dos aplicativos de relacionamento brilharem. Sem a possibilidade de conhecer alguém casualmente em uma mesa de bar, ou ser apresentado em um encontro de amigos, as ferramentas virtuais permitiram a oportunidade de expandir os “contatinhos” e de manter relacionamentos e laços antigos, sem correr os riscos do mundo lá fora.
O grupo Match, dono de marcas como Tinder, Hinge e Meetic, somou mais de um milhão de assinaturas pagas no último trimestre de 2020, em relação ao período anterior (+12%), chegando a 11 milhões de usuários no mundo.
Os dados de crescimento de outros apps também são significativos. O Happn notou um aumento de 18% nas mensagens trocadas pelo aplicativo; o The Inner Circle teve um aumento de 15% nos matches e 10% nas mensagens enviadas; e o Par Perfeito registrou crescimento de 70% de novos usuários.
“Deu match!”
Pouco mais de um ano depois da chegada do coronavírus no Brasil, falar nas mudanças para o relacionamento virtual não é mais a onda do momento. O que as pessoas ainda se questionam é como esperar um futuro ao decidir compartilhar a vida com alguém com quem o convívio presencial quase não foi compartilhado.
O novo peso colocado na balança do universo on-line trouxe consigo a carga emocional. “Com a pandemia, o valor maior passou para a vida virtual, e os sentimentos foram junto. É fundamental ter respeito com o que acontece no universo on-line. Você não pode se sentir descartável, afinal, não somos produtos disponíveis no e-commerce”, pondera a neuropsicóloga Leninha Wagner.
Solteira há pouco mais de dois anos, Letícia Sousa, 26, vive uma relação ioiô com os aplicativos de relacionamento. Durante a pandemia, ela reparou mudanças no comportamento dos candidatos a parceiros no app.
“Eu percebi a diferença de um ano pra cá. A maioria dos homens que conheci estava mais em busca da ‘conchinha’ do que querendo apenas relações sexuais. Percebi muito essa demonstração de carência, mas também um certo comodismo da parte deles”, explica.
Desde o último ano, a brasiliense recorreu ao aplicativo algumas vezes e, em uma delas, conheceu alguém que deu match além do botão. “Ficamos meses conversando, fazíamos chamada de vídeo e, mesmo não nos vendo, isso criou uma profundidade legal”, lembra. Porém, chegou um ponto em que “isso não estava servindo mais”.
“É um pouco assustador, porque você conversa com alguém por dois meses e acha que já sabe tudo sobre ele. Os assuntos foram acabando e você sente que não tem mais o que conversar”, confessa.
É um comportamento natural sentir muita falta da convivência física, segundo o psicólogo e clínico geral Roberto Debski. “Essa ausência de contato tem um limite, e para cada um ela se apresentará de uma maneira diferente”, afirma.
Quando a pessoa encontrar alguém com quem ela realmente tem afinidade, a distância física pode dificultar o relacionamento. É aí que mora o fator mais importante: “Para que ela sobreviva, ambos precisam estar focados naquela relação, nas possibilidades futuras e em ter paciência de aguardar até que essa realidade mude”, explica o especialista.
Responsabilidade emocional
No caso de Celine Campos, 27, a realidade é um pouco diferente. A brasileira mora na Bélgica e conta que vive em um relacionamento aberto com o namorado europeu. Ela usa os aplicativos de relacionamento para conhecer pessoas, sem estabelecer um vínculo mais duradouro. “No meu caso, deixo bem claro que procuro algo casual”, explica.
Com a chegada do coronavírus, Celine precisou interromper os encontros por motivos de segurança. “Eu já marquei com pessoas em parques, mas é bem diferente, porque ficamos distantes e com máscara. E você nunca está 100% seguro com relação à Covid-19”, pondera.
Segundo a maranhense, nos aplicativos de relacionamento estão pessoas de todos os tipos: desde quem quer encontrar um parceiro para um relacionamento sério, quem tenha relações abertas ou pessoas que estão simplesmente em busca de algo casual. “Porém, na minha bio do aplicativo eu deixo as coisas bem claras. Quem começa a conversar comigo já sabe bem a minha realidade”, garante.
A sinceridade é um dos mais importantes pilares de qualquer relacionamento. No universo virtual, porém, é fundamental reforçá-la sempre. Os chás de sumiço que algumas pessoas dão no aplicativo — param de responder e nunca mais aparecem — ganharam até nome próprio, e passaram a ser chamados de “ghosting”.
“Se você é convidado a entrar na casa de alguém, quando vai sair, o mínimo que pode fazer é se despedir. Isso é um sinal de educação, algo bem claro no cotidiano. Atualmente, todos esses códigos de conduta foram transferidos para o universo on-line. Conversar e deixar as coisas bem claras é o mínimo que você pode fazer”, explica a neuropsicóloga Leninha Wagner.
Cuidado digital
Quando o assunto é internet, é importante redobrar a atenção. Portanto, por mais que você converse e troque experiências, nunca estará 100% certo de quem é a pessoa do outro lado da tela.
De acordo com o especialista em direito digital Francisco Gomes Junior, deve-se tomar bastante cuidado com a exposição de dados pessoais nas redes. Conforme explica o profissional, além de evitar se abrir completamente com alguém que você nunca viu antes, considere tomar alguns cuidados com a própria tecnologia.
- Fotos também são dados pessoais e geralmente são expostas em sites de relacionamentos, assim como o número de telefone. Forneça apenas o mínimo necessário;
- Quando conhecer a pessoa e tiver uma relação de maior confiança, converse privadamente e não em rede, mas sempre com todos os cuidados para sua segurança;
- É necessário ler com atenção os termos de uso antes de usar o aplicativo — sim, aqueles que você e todo mundo provavelmente apertam aceitar sem pensar duas vezes —, pois alguns deles realizam gravações e vários deles fazem monitoramento de conteúdo, até para zelar para que não ocorram abusos e usos indevidos;
- Tenha sempre um antivírus para impedir possíveis tentativas de invasão;
- Ative os dispositivos de dupla segurança (bloqueio em duas etapas) nos aplicativos;
- Se o app propor troca de imagens, leia os termos de uso para saber como essas fotos serão armazenadas e excluídas.
Para fazer a relação durar
Henrique de Souza, 25, usa a tecnologia para conhecer gente “fora da própria bolha”. Segundo ele, chega um momento em que as coisas ficam monótonas, e as perspectivas de evolução começam a cessar. Aí surge a desmotivação e a relação começa aos poucos a perder o propósito.
Porém, em sua experiência, o cenário atual oferece mais abertura ao diálogo e a verdadeiramente conhecer o outro. “Senti que as pessoas estão mais disponíveis a falar delas mesmas, principalmente como elas se sentem nesse período difícil”, opina.
Do ponto de vista dos especialistas, essa abertura é positiva para quem quer investir em um relacionamento sem que o interesse apenas por atenção e likes se apresente.
Confira algumas dicas dos psicólogos para manter uma relação, que já começou on-line, saudável e duradoura: