Revolução dos cachinhos: crianças querem ostentar os cabelos volumosos
Nada de prender os fios. Com o empoderamento negro, as informações e os produtos para cuidar das madeixas ficaram mais acessíveis
atualizado
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A história é comum. Sem muita paciência ou conhecimento por parte dos pais, as crianças de cabelo cacheado ou crespo saem na rua todas iguais. Os fios são esticados com força para criar um rabo de cavalo ou coque bem no topo da cabeça. Tudo tão apertado que até os olhos ficam puxados e são comuns os relatos de dor na região. Mas o cenário está mudando.
O fortalecimento do movimento negro, orgulhoso dos cabelos cheios de volume, chegou aos pequenos. Com a ajuda de livros como Meu Crespo É De Rainha, da americana Bell Hooks, publicado no Brasil pela editora Boitempo depois de quase 20 anos fazendo sucesso nos Estados Unidos, as crianças estão cada vez mais empoderadas.
Até na televisão a tendência é sucesso. Basta ver atrizes como Taís Araújo e Sheron Menezes, ou as cantoras Karol Conká e Lellêzinha, do Dream Team do Passinho. O volumão que chama atenção é fundamental na representatividade e ajuda os pequenos a ver a lindeza dos cabelos. E, de pouco em pouco, a sociedade vem aceitando os crespos e os cacheados como algo belo.
O momento mudou até a indústria: é só visitar qualquer loja de cosméticos. Se no passado as prateleiras eram recheadas de produtos para cabelos lisos, com química, alisados e ressecados, hoje, os feitos especialmente para cachos e crespos conquistaram seu espaço. Tudo para torná-los ainda mais bonitos, cheios de movimento e definição.
A cabeleireira Adriana Ribeiro, dona do Afro & Cia Espaço Ponto Chic, conta que cuidar das madeixas vai além da questão estética. Uma de suas clientes, de 9 anos, sofria bullying em escolas diferentes por causa dos cabelos. Os pais a levaram ao salão, onde foi atendida por uma profissional especializada em crianças.“Ela voltou para casa transformada. Foi tirar fotos orgulhosa do cabelo e até as pessoas que falavam mal passaram a elogiar. Nesse momento, a gente vê como o trabalho é importante. Temos feito um serviço à sociedade”, explica Adriana. Sem dinheiro para bancar as visitas ao cabeleireiro, o pai da menina propôs uma permuta. Hoje, administra todas as redes sociais do salão e, em troca, os cachos da filha são cuidados pela equipe do Afro & Cia Espaço Ponto Chic.
“Onde tem cabelo crespo e cacheado tem amor”
A frase é da professora e roteirista Débora Morais. E ela tem conhecimento de causa: além de dar aulas para crianças, fez parte do curta-metragem Das Raízes às Pontas, premiado pelo júri popular no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. A obra discute os cabelos cacheados e crespos como uma forma de resistência. A ideia do documentário surgiu a partir da própria história: antes de se entender como mulher negra e abraçar a ancestralidade de sua família, fazia como muitos, alisava os fios.
Foi só na faculdade que passou a ter orgulho dos cabelos e quis passar esse amor para gerações futuras. “Temos crianças bem resolvidas com as madeixas, cheias de autoestima. Elas chegam com vários penteados diferentes e são muito felizes. Mas com outras acontece o oposto. É um trabalho permanente”, explica.
Segundo Débora, a escola tem papel fundamental nessa mudança. Por meio do ensino da história afro-brasileira e africana, as crianças podem aprender que o cabelo crespo era usado como adorno e para definir posições sociais. Faz parte da cultura africana e negra, é bonito e motivo de orgulho. “Os pequenos felizes com os fios naturais costumam vir de famílias e comunidades consolidadas com empoderamento negro. Não é uma questão totalmente resolvida — o racismo ainda é presente e atuante —, mas a comunidade afro está fortalecida”, afirma.
Alisa não, mamãe
Para evitar que as crianças donas de cabelos crespos e cacheados sofram como ela sofreu na infância no Rio Grande do Sul sem acesso a produtos específicos, a cabeleireira Rosi Ribeiro implementou um projeto em seu salão, o Via Cachos, no Conic. O Alisa não, mamãe pretende empoderar pais e filhos ensinando a tratar corretamente os cachos. Voltado para a população de baixa renda, o local oferece tratamento gratuito a quem se interessar até o dia 15 de maio.
Além de explicar ser possível cuidar dos fios sem desembolsar fortunas, a equipe de Rosi ensina quais são os erros mais comuns e mostra alguns penteados fáceis para o dia a dia. “Queremos desenvolver desde cedo a questão da autoestima, a conscientização de não usar produtos químicos na infância. Não é porque o cabelo é crespo e cacheado que ele precisa ser sinônimo de um cuidado dolorido ou molhado toda hora. Ele pode, sim, ser bonito, usado solto, ter definição e balanço”, explica a cabeleireira.
Rosi conta que nos últimos cinco anos o crespo e o cacheado estão “em explosão”. As crianças vão se espelhando nas atrizes e modelos que desfilam com as madeixas naturais e já não querem mais escondê-las em coques e rabos de cavalo apertados. Elas ficam encantadas com o balanço dos cachinhos. A cabeleireira acrescenta, cheia de orgulho: os pequenos clientes preferem usar os fios soltos e cheios de volume ou apostar em tranças com personalidade. “Queremos ensinar como os cabelos fazem parte da sua identidade”, diz.
As mães também precisam de atenção: por muito tempo, o cabelo alisado foi comum e quase obrigatório para se “estar na moda”. Nessa situação, é difícil conduzir os filhos a gostar dos próprios fios — Rosi afirma ser necessário mudar a concepção dos adultos para facilitar a vida de todo mundo.
Um exemplo famoso é o da atriz Samara Felippo. Ela tem um projeto no YouTube, o Muito Além de Cachos, com as filhas. As duas pequenas têm os cabelos cacheados e a atriz, dona de fios lisos, faz questão de compartilhar dicas que vai aprendendo para cuidar dos caracóis e empoderar as crianças.
A técnica de enfermagem Suene Leite Nunes, 29 anos, é mãe das cacheadas Ana Júlia, 8 anos, e Sofia, 4. As duas têm muito orgulho dos cabelos e adoram fazer tranças nas bonecas. Suene até sabia fazer alguns penteados, mas só os colocou em prática por insistência das filhas. “Elas adoram usar os fios soltos, cheio de cachos. A Ana Júlia até desejava passar chapinha e alisar quando era menor, mas agora não quer de jeito nenhum”, conta a técnica de enfermagem.
As cabeleireiras Rosi e Leia Ramos ensinaram ao Metrópoles três penteados especiais para facilitar a rotina. Ana Júlia, Sofia e Nágela Nicole, 3 anos, filha de Nayara Leite Nunes, foram nossas modelos.
Confira:
DICAS DA ROSI
- Evite lavar os cabelos com água quente;
- Não desembarace os fios secos e opte sempre por pentes de dentes largos;
- Cenoura, beterraba, abacate, banana madura e azeite de oliva podem ser batidos e aplicados nos cabelos como uma máscara. Basta deixar os fios embebidos na mistura por meia hora e lavar depois;
- Alguns chás podem auxiliar no cuidado: o de hibisco mata piolhos e o de folha de goiabeira ajuda no crescimento dos fios, por exemplo;
- Não é preciso desembolsar fortunas em cremes de tratamento. O mais importante não é o produto usado e, sim, saber fazer a fitagem, que separa os fios com as mãos e amassa os cachos (veja no vídeo acima);
- Cuidado ao fazer penteados. Não puxe demais os cabelos: além da dor de cabeça, a ação pode arrancar os fios e causar alopecia de tração.
Empoderamento desde a infância
A exemplo do Meu Crespo É de Rainha, vários livros tentam explicar às crianças a importância de aceitar os próprios cachos e desmistificar as reclamações comuns: é um tipo de cabelo difícil, é “ruim”, dói cuidar, etc.
Além de ser importante para os pequenos se identificarem com os personagens principais, a representatividade importa: sem exemplos de pessoas parecidas fisicamente, fica difícil para as crianças se entenderem como uma parte que se encaixa na sociedade. Veja alguns títulos interessantes para ajudar na aceitação da cabeleira: