Padre Beto comenta pedido de desculpa do Papa Francisco a homossexuais
Excomungado da igreja católica em 2013, por defender direitos dos homossexuais e de casais divorciados, padre Beto falou ao Metrópoles sobre o pedido de desculpas do papa Francisco aos homossexuais. “Se viesse hoje, Cristo seria mulher, preta, pobre e lésbica”, diz.
atualizado
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O Papa Francisco afirmou neste domingo (26/6) que gays, mulheres e crianças forçadas a trabalhar merecem um pedido de desculpa da igreja católica. “A questão é: se uma pessoa que tem essa condição tem boa vontade e procura por Deus, quem somos nós para julgar?”, disse sobre homossexuais. A declaração repercutiu na imprensa e nas redes sociais.
Antes de comemorar um novo tempo para as pessoas marginalizadas dentro dessa instituição, é preciso cautela ao interpretar as palavras do líder da igreja católica. O papa também acrescentou que parte do comportamento politizado da comunidade homossexual é condenável por ser “um pouco ofensivo para os outros”.
Ele, que é formado em direito e história, fundou a própria igreja, a Humanidade Livre, após a expulsão. Padre Beto falou ao Metrópoles sobre as declarações do papa, sexo, religião e o envolvimento da igreja na política partidária.
Há o que comemorar com as declarações recentes do Papa Francisco?
Determinadas declarações deixam sempre a desejar um pouquinho mais, pois são superficiais. Acabam deixando as pessoas alegres, porque elas nunca ouviram isso de um papa, mas
não têm grande significado. É só uma frase de efeito. Um gay não tem que ser julgado nem pelo papa, nem por Deus.
A fala do papa me lembrou um pouco a declaração do pai do rapaz que fez o ataque na boate Pulse, em Orlando. Ele disse que o filho tinha que entender que Deus é quem vai julgar aquelas pessoas. Há sempre uma áurea de julgamento, se não aqui, depois daqui. As sexualidades humanas devem ser reconhecidas como iguais.
Como os homossexuais são tratados dentro da igreja católica?
Principalmente nas confissões, eu ouvi muitas pessoas homossexuais que construíram infernos na sua vida, por conta da religião. Homens já maduros, de 50 e poucos anos, que eram casados com mulheres, tentaram seguir o que a religião esperava deles, se viam como alguém que tinha uma doença e precisava de cura. Chegaram a ter filhos, mas se abriam na confissão. “Eu vivo uma vida infeliz, minha mulher é infeliz. Não consigo aguentar e tenho casos por fora. Tenho medo que meus filhos descubram”, eles diziam, assim como mulheres que me procuravam.
Também ouvi muitos jovens que viviam o “namoro santo”, no qual você não tem uma intimidade. Os homossexuais acabam se escondendo nesses namoros. Isso tudo me fez ficar sensível a esse assunto, questionar a moral sexual da igreja, que causa mais neuroses e infelicidade do que uma vida sadia, como deveria ser.
Esta forma de tratar os homossexuais está de acordo com os ensinamentos de Jesus?
O Cristo é muito mais revolucionário do que a igreja vende. Cristo veria com uma grande tristeza a forma como essas pessoas são tratadas hoje. Se você lê os evangelhos, vê que Ele é muito solidário com as pessoas marginalizadas, se aproxima dessas pessoas sem nenhum julgamento e é muito mal visto pelas pessoas “corretas”, e vai ser muito mal visto até chegar à cruz.
Hoje, Cristo estaria lutando pelos direitos individuais das mulheres, dos homossexuais e em relação a outras questões. Com certeza estaria do lado LGBT. Jesus é o verbo que se fez carne, Deus que se faz presente entre nós. Para ter voz, teria que se adaptar à época. Por isso, Deus apareceu como homem, assim como Jesus. Se aparecessem como mulher, naquela época, seriam apedrejados no primeiro discurso. Se o verbo se fizesse carne hoje, viria na pele de uma mulher, pobre, negra e lésbica, com toda certeza. O verbo se fez carne na periferia, não nasceu em Roma, que era a capital, não era um romano que teria status e poder. Se fez gente no lugar marginalizado e se une aos marginalizados.
O papa também disse que as mulheres deveriam receber desculpas. Como a igreja trata as mulheres?
Qualquer padre vai dizer que a mulher é um ser humano, como o homem é um ser humano. É apenas um discurso politicamente correto. Se você vê a situação da mulher dentro da igreja, ela não tem o direito de celebrar eucaristia, de participar das decisões do clero, tudo está nas mãos de homens. Há uma contradição muito grande entre o discurso e a prática. Não é humano ter apenas homens à frente da igreja.
Como converter esse discurso da igreja em ações que façam a diferença na vida das pessoas?
Se o papa recomenda que a igreja peça perdão, não podemos esquecer que o perdão exige mudança de postura do pecador. No caso, o pecador é a igreja católica. Aí está o xis da questão, cadê a transformação? A igreja católica vive muito do discurso platônico que não desce à prática. É preciso fazer uma transformação da moral sexual da igreja, que ainda vê a sexualidade humana como algo negativo.
Sexualidade é saúde, não é só uma questão moral. Nesse ponto, a igreja deve começar a se abrir para a diversidade sexual: reconhecê-la como riqueza e não como pecado. Há muitos homossexuais dentro do clero, então seria fácil. As palavras do sacerdote são muito importantes para um povo tão religioso. A igreja poderia ajudar na educação sexual de qualidade. Ao invés de castrar a sexualidade ou limitá-la, poderia ensinar sobre gravidez. Em uma boa educação, o jovem sabe que não deve se casar sem conhecer a intimidade do parceiro. O celibato também não deveria ser obrigatório.
Qual é o papel da igreja nas transformações sociais?
Vejo esses padres que atingem grandes públicos, como Fábio de Melo e Marcelo Rossi, eles poderiam fazer muito. Se eles deixassem de passar uma reflexão simplesmente individual e tocassem em questões que são importantíssimas para a sociedade: como valorizar a educação, o salário dos professores, a saúde, o filho de Deus não pode ter uma saúde pública desse jeito, se falassem sobre o salário dos policiais, se eles tocassem na corrupção. Eu acredito que nós teríamos um avanço muito grande na contribuição da igreja para a sociedade.
Fé e questões sociais devem estar unidas. Como vou amar o meu próximo se não me interesso pelo Sistema Único de Saúde? Se meu filho tem plano de saúde, o dos outros não importa? Amor ao próximo é engajamento em transformação social.
Como o senhor vê a atuação de padres e pastores no Congresso Nacional?
Hoje, a ação política é desastrosa: a ligação entre fé e política é outra, é lutar pelo bem comum de todas as pessoas, sem impor crença alguma aos outros e ponto final. Querer impor a minha crença através do Estado é ameaçar o Estado laico, o que temos de mais precioso na democracia. Todas as religiões estão protegidas enquanto o Estado laico existir, a diversidade humana, a democracia está protegida enquanto o Estado for laico. As religiões precisam trabalhar para conservar o Estado laico: é questão de amor ao próximo.
Se o Estado resolve discutir o aborto e chama religiões para a conversa, alguma coisa está errada. Quem tem que discutir aborto são as mulheres e os profissionais da saúde. Aqui não entra religião. Me dá tristeza ver aquele crucifixo atrás do presidente. Deveriam colocar todos os símbolos ou nenhum.
Como é a igreja que o senhor criou após ser excomungado?
Criei a Humanidade Livre, em Bauru, que não é católica nem evangélica. Celebra missa aos domingos e, nessas missas, a gente consegue agregar pessoas de diversos berços religiosos. Tudo com muita simplicidade. Não tem doutrina, é centrada no amor ao próximo, que une pessoas umbandistas, espíritas, católicas, do candomblé, evangélicas. Dentro do princípio do amor ao próximo, cada um pode nortear sua vida como desejar.
O senhor não quis abrir mão de ser chamado de padre?
Sempre fui conhecido como padre Beto. Modificar o nome seria modificar a própria personalidade. Eu vim de um berço católico, toda a minha caminhada é nesse sentido. Seria artificial buscar outro tipo de rito, por isso celebro missas.
A excomunhão não tira o título de padre. Ela te bane do catolicismo. Sou um padre banido. Eles não dizem com todas as letras porque soa mal, mas, para eles, estou condenado ao inferno. Hoje, sou um ser humano que acredita em Deus, que a gente sintoniza com ele quando luta pela felicidade do ser humano.
Por que o senhor quis ser padre?
Eu vim da pastoral da juventude. Nós tínhamos cardeais e bispos muito envolvidos nas questões sociais. Quando morreu uma pessoa da minha família, isso me fez refletir: um dia eu também vou morrer, como será minha caminhada? Fiz direito e história. Na faculdade de história, tive muita influência de Marx, apesar de ser ateu, ele, que é do materialismo histórico, fala do ser sujeito da história, do sujeito social. Aí pensei: que sujeito da história eu quero ser? Sacerdotes têm muito poder de transformação.
O senhor pretende se casar?
Não dá para programar. Estou com 50 anos, não entrei jovem nem virgem para a igreja. Entrei com 27 anos e com uma caminhada de universitário, uma vida sexual ativa que deixei de lado desde então. Tive namoros, fiquei e depois fiz a opção de ser padre. Dos 27 até hoje vivo uma vida celibatária, me acostumei a ficar sozinho, não sei se hoje me adaptaria a uma vida a dois. Não está nos meus planos.