O mito da (des)harmonização facial: como driblar essa armadilha?
Os mesmos procedimentos realizados em pessoas diferentes estão reproduzindo uma série de rostos iguais? Entenda a problemática
atualizado
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Apaixonado pelo universo da beleza ou não, certamente você já foi apresentado ao conceito da harmonização facial. A promessa de entregar um rosto harmônico, que se molda em uma boca carnuda, sobrancelhas definidas, mandíbulas e maçãs do rosto marcadas já levou milhares de brasileiros às clínicas de estética.
O crescimento do interesse pela harmonização facial também se expressa em números. A ferramenta de busca Google registrou um aumento de 540% na pesquisa pelo termo em 2019, enquanto, em 2020, o assunto foi buscado 115% a mais.
O que Alok, Gretchen, Joelma, Diego Hipólito, Wesley Safadão, Mc Mirella e Lucas Lucco têm em comum? Um rosto extremamente anguloso. Dentro de moldes impostos, um mesmo efeito se reproduz em várias faces. Para alcançar o tão desejado ideal de beleza, a “receita de bolo” já foi escrita pela sociedade. E, todos os dias, as redes sociais fazem questão de reforçá-la.
Especialistas, de diferentes áreas, estão preocupados em questionar a banalização da harmonização facial e de outros procedimentos estéticos. O efeito acontece quando os mesmos padrões são realizados em todas as pessoas, gerando rostos muito semelhantes, sem respeitar as características individuais de cada uma. As mudanças são tão similares, que o procedimento passou a ganhar a própria “marca”.
A harmonia foi confundida com o que é simétrico mas, ao contrário do que muitos pensam, simetria não é sinônimo de beleza. No caso do ser humano, nem de perfeição — um conceito inalcançável.
“Aspectos como o ideal de beleza também são culturais, sociais e temporais, e o tempo vai dizer para aquela sociedade o que é belo. Essa busca incessante pela perfeição significa colocar seu corpo a serviço de um padrão que vai mudar”, argumenta a professora da Universidade de Brasília (UnB) Kelly Quirino.
“Se a cada momento que surgir uma nova tendência você fizer algum tipo de procedimento estético para mudar seu rosto, isso beira tratar o seu próprio corpo como uma mercadoria”, pondera a pesquisadora em gênero e raça.
A discussão permeia, principalmente, três espectros: as pressões sociais e padrões impostos pela sociedade; o excesso de procedimentos e a banalização da estética; e a necessidade de agir em conformidade com o outro, inerente do ser humano, para ser aceito.
A cultura da ‘selfie’
O desejo de alcançar “uma boca carnuda e bem desenhada” como as que via no Instagram levou Deiviany Brito, de 38 anos, a uma clínica de estética em Brasília. O que era para se tornar motivo de orgulho, no entanto, virou uma espécie de trauma.
Em outubro, ela decidiu investir no preenchimento labial oferecido por uma clínica que conheceu pelo Instagram, com mais de 80 mil seguidores. “A responsável aplicou a ampola de 1 ml inteira apenas no lábio superior. Eu achei estranho, mas imaginei: não é possível que vai dar errado, ela é profissional”, lembra a lojista de planaltina.
Como era de se esperar, o resultado foi bem aquém do esperado. “Não só foi tudo para o lábio inferior, como a região aumentou de um lado só. Eu fiquei com a boca torta, me senti extremamente constrangida, e quando fui procurar a clínica, não confiei que eles iriam resolver”, lamenta.
Agora, Deiviany espera o resultado na Justiça. “Eu acho que fiquei enfeitiçada, acreditei que aquela ‘fama’ do Instagram era sinal de que eu poderia confiar”.
Leque de opções, nem sempre confiáveis
Como aconteceu com Deiviany, o problema também se apoia em uma gama de profissionais focada, principalmente, em realizar o procedimento a qualquer custo, sem explicar as verdadeiras limitações da estética. O termo harmonização facial também está sendo levado ao desgaste.
“A busca por procedimentos estéticos está muito fora do que é o proposto da harmonização: os pacientes querem se tornar outras pessoas, seguindo um padrão de beleza inatingível”, explica Luciana Toral, médica especialista em medicina estética avançada.
A harmonização facial nada mais é do que melhorar os pontos estratégicos da sua face para deixá-la, naturalmente, mais harmonizada. O que acontece, na prática, é que muita gente trata o corpo e o rosto como um rascunho a ser corrigido, e a estética como a forma de aproximá-lo de um ideal de perfeição inalcançável.
As técnicas minimamente invasivas correspondem a 49,9% de todos os procedimentos efetuados por cirurgiões plásticos no Brasil, de acordo com o último Censo realizado pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) em 2018. Para fins de comparação, em 2014, esse percentual era de 14,4%. Estima-se que, em 2020, ele tenha crescido ainda mais.
Limitações da estética
Segundo a cirurgiã plástica Juliana Sales, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), nos últimos 20 anos, o crescimento das possibilidades estéticas disponíveis causou um reflexo significativo na demanda.
A especialista defende que todos esses problemas como padrões de beleza e transtornos de imagem sempre existiram. O crescimento da oferta, a maior facilidade dos procedimentos minimamente invasivos e o excesso de profissionais, porém, acabou por gerar um desequilíbrio.
“Na minha experiência, existe uma banalização muito maior do que é não cirúrgico: porque parece mais ‘simples’ e seguro, e nem sempre o é. Tudo que começa a ser muito comentado, difundido e acessível, pode se tornar exagerado”, afirma.
O primeiro passo para revigorar a autoestima e encarar a pressão social com maior responsabilidade é reconhecer e respeitar as próprias individualidades. “Não existe fórmula a reproduzir: o mesmo nariz, a mesma boca, a mesma mandíbula em todo mundo”, defende a médica. “É sobre a beleza individual que todo mundo fala, mas quase ninguém faz”.
Grama mais verde
A necessidade de pertencimento é inerente à natureza humana. É natural desejar se encaixar e ser aceito por um grupo, e é comum procurar similaridades entre você e o outro. Porém, levar essa necessidade como máxima é um problema, de acordo com o psiquiatra Luan Diego Marques.
“Nós somos diferentes por natureza, e quando brigamos com essa padronização, conseguimos suportar as nossas próprias particularidades, não só estéticas mas em diferentes aspectos da vida. É fundamental a gente questionar e brigar com essa tendência natural de querer ser exatamente como o outro”, aconselha.
Para quem quer exercitar o músculo da autoestima, a presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília, Renata Figueiredo, ensina dicas fundamentais:
- Cuide da sua saúde: se alimente bem e pratique atividades físicas, sem exageros;
- Pratique regularmente o exercício de reconhecer seus melhores atributos;
- Entenda que você não é uma máquina, que precisa estar bem e produzindo o tempo todo;
- Encontre momentos para se reconectar consigo mesma mentalmente e com seu corpo;
- Faça uma limpeza nas redes sociais: aperte o botão do unfollow em qualquer pessoa que te faça se sentir mal com seu corpo e suas escolhas.