Nem só, nem mal acompanhada: mulheres lutam contra o estigma da solteirice
Enquanto caminham em busca da independência emocional e do empoderamento, mulheres provam que não existe mais “ficar para titia”
atualizado
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Tente lembrar as suas histórias favoritas de criança. Entre castelos, princesas e vestidos suntuosos, provavelmente essas palavras estejam alojadas em algum lugar do seu cérebro: “Eles se apaixonaram, se casaram e viveram felizes para sempre”. Por mais que sejam apenas contos infantis ou sirvam de roteiro para comédias românticas, o mito da completa realização por trás do casamento permeia o imaginário de muitas mulheres até a vida adulta.
Contudo, estamos vivendo um momento “paradigmático”, de acordo com Kelly Quirino, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora de gênero e raça. Um levantamento do IBGE de 2020 aponta que 11,7 milhões de brasileiros vivem sozinhos, o que corresponde a 16,2% dos lares. O número de casamentos civis, por sua vez, caiu pelo quarto ano consecutivo.
Na origem etimológica do termo, a palavra indivíduo vem do latim e significa aquilo que não pode ser dividido. Se as pessoas são plenas e inteiras por si só, mulheres jovens passaram a questionar a necessidade de viver em busca da sua “metade da laranja” ou de uma tampa para sua panela.
“A última vez que eu comecei um relacionamento sério foi há 10 anos”, relembra Késia Zaiden, de 28 anos. Desde então, ela percebeu que mantinha relações muito mais pela pressão social do que porque “sentia algo a mais”.
“Então eu me libertei dessa questão e encaro isso numa boa. Passou a ser algo leve e, se eu conhecer alguém, ótimo. Se não, eu tenho outras prioridades”, afirma.
Solteiro não é estar só
Segundo o médico e psicólogo de São Paulo Roberto Debski, para que a pessoa consiga viver de forma mais saudável e autossuficiente, é preciso distinguir a solidão da chamada solitude.
“Solidão é quando a pessoa se sente sozinha e fica mal por isso. Ela precisa de outra pessoa e parte em busca de uma relação para não ficar só”, explica o psicólogo. Solitude, no entanto, é o que vive uma pessoa “que pode estar sozinha, mas está bem consigo mesma, não precisa de outra pessoa para ficar bem, o que não impede que ela tenha bons relacionamentos”.
De acordo com Késia, em sua experiência, encontrar um relacionamento pode ser traduzido na necessidade de “uma cobertura de bolo”.
Na vida, as pessoas compram os ingredientes, criam as próprias receitas e vão fazendo o bolo. Ele fica pronto, e dependendo da forma que ele foi feito, não há necessidade de complemento. “A cobertura, ou um relacionamento, seria um extra”. A receita, por si só, deve ser boa. “Não adianta você querer salvar o bolo com uma cobertura, se ele já não está bem feito”.
“No final das contas, para mim é isso. Se eu tiver ingredientes, tempo e vontade para a cobertura. Se eu achar que ele vai ficar melhor com esse toque a mais eu faço. Mas se não, como o bolo tranquilamente e não vou ser menos feliz por isso”, ilustra.
A neuropsicóloga e terapeuta familiar Leninha Wagner relata que essa pressão social vem, principalmente, de gerações anteriores. “As novas solteiras, pelo que eu vejo em consultório, recusam esse modelo tradicional de relação em que o casamento é colocado como única saída”. Há um restabelecimento de prioridades, com formação e carreira profissional ocupando espaços de maior destaque.
Pressão social
No entanto, bastam encontros com mães, tias e avós para o assunto “e os namoradinhos ou namoradinhas” surgir. “As mulheres estão se casando mais velhas, e o assunto ‘ficar para titia’ já não é uma preocupação tão extrema”, diz a neuropsicóloga.
Se a pressão familiar for um incômodo, a especialista orienta: “A chave de tudo está no diálogo. Explique que o modelo que eles viveram não funciona mais para nós. Será que a sua mãe/tia/avó queria mesmo ter tido tantos filhos? Os sonhos dela foram respeitados na época?”. Estabeleça uma conversa franca e explique que apenas “você sabe o que é melhor para si mesma”, orienta.
Muitas vezes, essa pressão pelo status social de estar em um relacionamento é pano de fundo para imposições, relações tóxicas e vários níveis de opressão, como explica a pesquisadora Kelly Quirino.
“Precisamos de uma sociedade que nos dê estrutura para viver de forma autônoma. A figura do homem como necessário para nos proteger é uma máscara para opressão. Muitas de nós, enquanto mulheres, aceitamos relacionamentos tóxicos para mostrar que temos namorado, marido, para exibir para a sociedade”, pondera.
Construção histórica
A pesquisadora salienta que essa visão patriarcal é uma construção social que vem desde a pré-história. O primeiro argumento era que a mulher tinha menos força física que o homem e, por isso, precisava ficar em casa cuidando dos filhos enquanto o homem ia caçar.
“Com o surgimento das organizações sociais, passamos a ver a prevalência de uma perspectiva em que a mulher seguia uma lógica de dependência ao homem”, explica a professora. Com a constituição da família nuclear, por volta do século 17, “há um estabelecimento ainda mais rígido dessa necessidade feminina de uma figura masculina”, diz.
Até que, por volta do século XX, Simone de Beauvoir e o movimento feminista problematizam esse contexto e mostraram que essa realidade não é uma questão biológica, e se trata de uma relação de poder.
Ainda hoje é extremamente transgressor ouvir mulheres que se bastam sozinhas e não precisam de um relacionamento para isso, segundo a especialista. Isso está no cinema, na literatura, nas histórias de um amor romântico que vai te trazer felicidade. “Temos um árduo trabalho pela frente para desconstruir na cabeça das mulheres que não é necessário ter um parceiro para ser feliz”.
O lado bom de estar solteira
Quando se fala em lado positivo da solteirice, é impossível não pensar em liberdade. Fazer o que bem entende, na hora que quiser e com quem quiser, sem dar satisfação a absolutamente ninguém, é o ideal de plenitude de muita gente.
Sem ter a necessidade ou obrigação de “pensar por dois”, o que é natural quando se está em um relacionamento sério, há mais espaço para colocar em prática objetivos e desejos pessoais. Sobra mais tempo para investir em si mesma, aceitar oportunidades inusitadas e igualmente engrandecedoras, sonhar com novos horizontes e até poupar uma graninha.
A polêmica do “relógio biológico” também não é, necessariamente, um problema. Existem outras alternativas como congelamento de óvulos e adoção.
De Brasília, a publicitária Amanda Oliveira vive com o lema: “Seja você o amor da sua vida”. Depois de terminar um relacionamento longo, de 6 anos, ela acredita que mulheres solteiras ainda enfrentam o estigma, contudo, enxerga um crescimento na segurança feminina.
“De vez em quando eu escuto um: você é muito bonita e simpática, porque ainda está solteira?”, exemplifica. Para ela, o processo é muito mais uma busca de autoconhecimento e deve ser uma via de mão dupla. Antes de reproduzir esses questionamentos ou estereótipos, pense duas vezes.
“A gente vai muito longe quando caminha para dentro de si mesma, se você olhar para si com mais gentileza, vai ver que a solteirice pode ser libertadora”.