Na régua: barbeiro do DF viraliza com cortes cheios de personalidade
Mateus Kili, o Barbeiro da Favela, chama atenção das redes sociais com releituras do flat-top dos anos 1980 e projeta salão na Ceilândia
atualizado
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Cabelos esculpidos à perfeição com muito estilo e criatividade são especialidade do Barbeiro da Favela, marca pessoal que Mateus Kili adotou ao encontrar-se no ofício. Embora seja filho de cabeleireira, ele não imaginava seguir carreira no mercado da beleza. No entanto, apaixonou-se pela profissão e abraçou o apelido ao descobrir que podia fugir dos padrões e contribuir com a autoestima de homens e mulheres da periferia.
A originalidade e o perfeccionismo das criações logo foram notadas na internet. Depois de publicar o resultado de um dos seus cortes mais habilidosos, um flat top em formato de escada, o morador do DF viu seu talento ganhar projeção nacional, assim como o primeiro empreendimento, recém-inaugurado em Ceilândia, em sociedade com os amigos.
Com mais de 1,1 mil compartilhamentos (e contando), a publicação arrancou elogios à inventividade do cabeleireiro. Também despertou a nostalgia de quem associou o style ao eternizado por Will Smith na icônica série The Fresh Prince of Bel-air. Ou Um Maluco no Pedaço, como foi traduzida na adaptação da TV aberta brasileira.
A publicidade gratuita veio em boa hora. Há menos de um mês, ele reuniu os amigos e deu início a um projeto antigo: montar um negócio especializado em cabelos afro para preencher a lacuna desse mercado na região. Apesar de 65% da população da Região Administrativa ser negra, a oferta de salões especializados em Ceilândia é escassa.
“Por muito tempo, o preto não frequentou o salão de beleza para cultuar o seu cabelo. Esse era um espaço onde éramos obrigados a abaixar, cortar, alisar. Isso tá mudando”
Mateus Kili
Com o viral, o espaço de aproximadamente 25m² foi notado até mesmo por perfis estrangeiros. E se os posts chamam atenção nas redes, a identidade visual estampada nas paredes convidam quem passa pelo local para uma espiadinha. “As pessoas ficam curiosas, entram, perguntam o preço. Também tem um lance de representatividade, do impacto que tem para a galera ver uma mulher negra, empoderada, com um black todo rosa”, exemplifica.
A mulher de cachos pintados é Tânia, colorista, visagista, especialista em cabelos afros e sócia do empreendimento. Além dela, integram a sociedade Luan Oliveira, tatuador e body piercing, e Moisés Pretinho, responsável pela parte administrativa. A oito mãos, eles conseguem abarcar no Under Family Studio um número razoável de procedimentos. Mas, depois do sucesso, o flat-top deve passar um bom tempo na lista dos mais pedidos.
Resgate e resistência
O visual que Mateus tem difundido nas redes sociais foi inspirado no estilo militar dos anos 1940 e 1950 e teve seu auge na era de ouro do Hip-hop. Embora tenha voltado como trend para cabelos masculinos, tudo indica que a primeira pessoa a desfilar um autêntico flat-top por aí tenha sido uma mulher.
Radicada nos EUA, a cantora jamaicana Grace Jones apresentou o layout quadrado ao mundo antes que ele fizesse a cabeça de outros artistas na capa de um álbum lançado em 1980.
Mais tarde, os rappers Big Daddy Kane, Doug E. Fresh, MC Rakim, Jazzy Jeff e Fresh Prince adotaram o visual e deram ao corte o tom de rebeldia associado ao estilo musical – máxima seguida ainda hoje.
Assim como as rimas que falam sobre a invisibilidade negra, a altura e o estilo empregado no flat-top reverberam a essência política do estilo.
“Por muito tempo, a população negra esteve condicionada ao uso contido do cabelo crespo (bem curto para homens e alisado para as mulheres) a fim de comportarem um padrão estético brancocêntrico abafado pela insígnia da ‘boa aparência’”, explica a historiadora e coordenadora de Políticas de Promoção e Proteção da Igualdade Racial do GDF, Marjorie Chaves.
Nesse sentido, o movimento de transição capilar e de redescoberta do cabelo crespo extrapola o campo da beleza para tornar-se um encontro com a identidade, uma resposta ao racismo e um símbolo de resistência.
Jovens negros têm falado de autoestima, de autocuidado, de afeto… E contribuído para que outros jovens repensem sua autorrepresentação, ainda que as novelas, os programas de TV e as revistas não representem a diversidade da nossa população
Marjorie Chaves
“A opressão por um padrão estético europeu produziu graves efeitos na nossa autoestima. Mesmo com toda a mudança recente na forma de manipulação do cabelo crespo como resgate de uma história que nos foi negada, ainda é persistente a ideia de que o cabelo volumoso, com tranças ou dreadlocks é feio.”
Preconceito no mercado
As ponderações de Marjorie fazem todo sentido nas experiências pessoais dos adeptos do visual. O próprio modelo do viral, Luis Davi, 18 anos, lembra que o mercado de trabalho é um dos locais onde a intolerância aos cabelos afro é mais presente. “Já tive medo de ser demitido por isso, sempre levava bronca e era aconselhado a abaixar o cabelo. Tento levar no bom-humor.”
Nesse cenário, as redes sociais não entraram na história de Mateus ao acaso. Segundo a pesquisadora, o debate propiciado nas plataformas digitais auxilia em uma representação positiva do corpo negro e do cabelo crespo. Esse espaço tende a mudar justamente pela popularização dessas mídias como um ambiente de disseminação de ideias.
“As redes sociais foram e têm sido um poderoso disseminador de ideias. Jovens negras (os) têm falado de autoestima, de autocuidado, de afeto e contribuído para que outras (os) jovens repensem sua autorrepresentação, ainda que as novelas, os programas de TV, as revistas brasileiras não representem a diversidade da nossa população.”