Irmãs apátridas recebem nacionalidade brasileira
A naturalização foi entregue durante um evento da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) em Genebra, na Suíça
atualizado
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Após três décadas em busca de uma nacionalidade, as irmãs Souad e Maha Mamo foram beneficiadas pela nova lei brasileira de migração. A naturalização foi entregue nesta quinta (4/10) pelo Ministério da Justiça, durante um evento da Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados (Acnur) em Genebra, na Suíça.
O documento de nacionalidade foi entregue pelo coordenador-geral do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), Bernardo Laferté, e pela representante permanente do Brasil junto à ONU, embaixadora Maria Nazareth Farani Azevêdo.
De acordo com o ministro da Justiça, Torquato Jardim, a primeira naturalização de apátridas simboliza um momento “histórico” para o país. “Ao conceder a nacionalidade brasileira a Maha e Souad Maho, o Brasil reafirma sua tradição de acolhimento aos vulneráveis e desassistidos, e dá um exemplo ao mundo de que foi, e sempre será, um país comprometido com a erradicação da apatridia”, afirmou, durante a solenidade.
Em junho, as irmãs tiveram a condição de apátrida (em que o indivíduo não tem nacionalidade reconhecida) confirmada pelo governo brasileiro.
“É um sonho realizado. Apatridia não é uma questão política nem religiosa, é humanitária”, desabafa Maha, que atualmente vive em Belo Horizonte, com a irmã Souad.
Infância
Desde cedo, as irmãs enfrentaram desafios. Elas nasceram no Líbano, mas, por questões religiosas, não foram registradas no local. O casamento da mãe, muçulmana, com o pai, cristão, não tinha reconhecimento legal – assim como os três filhos decorrentes da união.
“Sempre sentia que tinha algo errado, que eu era menor do que as outras pessoas. Minha vida sempre foi acordar e pensar: ‘E hoje? Será que vou sobreviver?’”, desabafa Maha. O medo de viver escondida era constante. “Se a polícia me parasse, seria presa, porque não tinha documentos. Então, eles poderiam me considerar terrorista”, lamenta.
Ainda crianças, as duas irmãs precisavam usar documentos emprestados de amigos para atividades básicas, como consultar-se em um hospital. Em casos mais urgentes, viam-se obrigadas a pagar mais pelo atendimento, para proteger a identidade renegada. Em meio a uma guerra civil, estudaram em uma escola armênia na qual foram aceitas por pura solidariedade da direção.
Apaixonada por esporte, Maha era líder do time de basquete do colégio e tinha ótimas notas, mas, mesmo assim, não era possível competir. “Quando eu tinha 16 anos, olheiros foram procurar talentos na escola e me escolheram para ser profissional, mas não consegui jogar porque não tinha documento. Foi a maior frustração da minha vida”, recorda.
A jovem, então, passou a compreender sua condição de apátrida e decidiu questionar os pais. A reação não foi positiva: “Nós brigávamos. Depois, entendi que, dentro de casa, não poderia falar sobre esse assunto, era um tabu”, conta Maha.
Maha inscreveu-se em todas as universidades do Líbano, mas apenas uma a aceitou. Então, ela precisou deixar para trás o sonho de cursar medicina. A única opção viável era business and computing – um diploma duplo oferecido por instituições particulares.
Para custear os estudos, precisava ter recursos próprios e, novamente, viu-se diante de novo desafio. Com muito esforço, conseguiu emprego, porém sempre trabalhando mais e ganhando menos. Quando a fiscalização chegava, tinha de se esconder. Hoje, após os obstáculos, Maha tem mestrado em administração e fala cinco idiomas.
Para o coordenador do Observatório das Migrações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Leonardo Cavalcanti, as mudanças na legislação brasileira possibilitam a superação de uma série de barreiras burocráticas aos imigrantes. “Contribui de forma decisiva a consolidar a imigração como um ativo para o desenvolvimento do país, não somente do ponto de vista econômico mas também cultural, social e político”, pontua o especialista.