Gustavo Fernandes, um dos melhores oncologistas do Brasil, mora no DF
Um dos nomes mais promissores do tratamento de câncer do país tem apenas 37 anos e atende logo ali, em consultório nos fundos de um complexo médico na L2 Sul
atualizado
Compartilhar notícia
Em 1978, o médico Sérgio Simon regressava ao Brasil depois de uma temporada fora se especializando no tratamento de tumores malignos pelo Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York. Naquela época, a palavra “oncologia” mal existia no vocabulário médico brasileiro. Simon ficou conhecido por inaugurar no país o termo que, mais tarde, se referiria a uma das doenças que mais matam no mundo: 8 milhões só no ano passado, segundo a Organização Mundial da Saúde.
No mesmo ano em que o Brasil ganhava seu primeiro oncologista, nascia em João Pessoa, na Paraíba, Gustavo Fernandes. Pode até ser que exista quem nunca tenha ouvido falar dele. Os sortudos que nunca seguraram a mão de um amigo ou familiar durante uma sessão de quimioterapia ou aqueles que não tiveram outra opção a não ser se render ao SUS numa hora dessas da vida.
Mas são raros os que sequer ouviram o nome do seu chefe: Paulo Hoff, diretor geral do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, nas mãos de quem recaem os tratamentos de câncer dos mais ricos e poderosos do país — quiçá do mundo. O ex-vice-presidente José de Alencar, Dilma Rousseff e Reynaldo Gianecchini talvez sejam os mais conhecidos. Mas há os anônimos que enviam helicópteros para que ele chegue mais depressa ao local do atendimento. É este o nível.
Hoff, médico formado pela Universidade de Brasília, é talvez uma das maiores — se não a maior — autoridade em câncer do país atualmente. Gustavo Fernandes é seu pupilo prodígio. É o nome por trás do braço do Sírio em Brasília, inaugurado em 2011, e, aos 37 anos, um promissor substituto ao posto que Hoff ocupa hoje no tratamento da doença no Brasil. Mas que ele não escute: gosta de reforçar que tem dentro de si um comichão que o empurra sempre a “traçar o próprio caminho”.
Essa agonia em desbravar caminhos quase o levou a renegar a medicina. Criado em família de médicos – são mais de 30, contando pai e irmã -, titubeou no vestibular. Pensou em direito. Sempre teve um “talento matemático”, se imaginava físico, mas as teorias das coisas invisíveis não lhe pareciam reais. “Gosto das coisas práticas”, diz. Cedeu. Com 17 anos, ainda moleque, já era aluno do curso de medicina da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Ufa, a família respirou aliviada.
“Brinco que na minha família só se comemora vestibular de medicina”, ri. A história dos Fernandes com o curso começou com um primo da avó, lá de Uiraúna, cidade distante 470 quilômetros de João Pessoa, que decidiu ser doutor. Diploma na mão, voltou para o interior diferente. Pose, educação e conta bancária mudadas. Uma porção de outras pessoas seguiram o caminho. O pai de Gustavo, inclusive. Aécio Pola Fernandes, filho de um analfabeto funcional – “um cara brilhante”, o neto reconhece – fez uma carreira bem-sucedida como reumatologista na capital paraibana.
Não é muito de falsa modéstia. As conquistas, do vestibular – “dos 24 mil candidatos, a maior nota de física foi a minha” – à seleção para a residência no Sírio-Libanês, na qual enfrentou 83 outros candidatos, ele conta com orgulho transparente. “E 83 médicos, já com dois anos de residência. Pessoas que já foram peneiradas duas vezes”, reforça. Pode soar vaidade. Quem convive com ele há mais tempo – pacientes cativos, sobretudo – diz que de jeito nenhum. Ele gosta de contar histórias.
Na Coordenação de Medicina do Centro de Ciências Médicas da UFPB nenhum professor se lembra de Gustavo. Só a professora Tereza Helena Tavares Maurício reconheceu o ex-aluno. “Me lembro dele e sei apenas que ele é filho do dr. Aécio Pola Fernandes”. As memórias ficaram restritas a meia linha de e-mail. Da porta para fora, tem se saído bem na missão de se fazer lembrado pela medicina. O último feito do currículo não tem a ver com diplomas, congressos ou cursos, mas o deixou particularmente emocionado: em agosto, vai receber o título de Cidadão Honorário de Brasília.
O câncer é para os fortes
Saiu da UFPB com dois objetivos claros, seu “flow chart”, como ele diz: fazer residência em clínica médica na Universidade de São Paulo e oncologia no Hospital Sírio-Libanês. A clínica é pré-requisito para os aspirantes a oncologistas. A escolha da especialidade costuma ser um pequeno dilema para os estudantes de medicina às vésperas da prova de residência. Para ele, veio quase como missão.
“Foram dois fatores”, conta. O primeiro, quase que por demanda: o envelhecimento da população tem aumentado a incidência de câncer. É difícil quem não tenha uma história para contar sobre a doença, própria ou de conhecido. O segundo foi triste consequência do primeiro. Enfrentou sua primeira briga contra a doença na faculdade, quando perdeu a mãe para um câncer de ovário. Ela tinha 51 anos.
Claro que essa não é uma história agradável de se contar e nem de se lembrar. Foi uma influência muito pesada para mim. Senti uma necessidade de melhorar as coisas que eram feitas na época, de cuidar dos doentes de câncer de uma maneira decente.
Gustavo Fernandes
Na época, sua mãe foi tratada já no Sírio, em São Paulo. Foi quando ele começou a ter os primeiros contatos com a instituição que seria a alavanca maior da sua jornada. “Foi um momento muito difícil da nossa vida, mas muito bem conduzido do ponto de vista clínico”, comenta, aqui dando mais lugar ao Gustavo “médico” que ao “filho”. Não confundir com frieza – seus pacientes jamais poderão dizer que estão lidando com uma pessoa que não sabe a dor de ser apunhalado nas costas pelo câncer.
Objetivos traçados, Gustavo quis mais. Ir além é o desafio que o mantém motivado. Quando se formou clínico pela USP, ainda aos 25 anos, hesitou em começar os estudos em oncologia. “Eu era muito novo, terminaria a oncologia com 27 para 28 anos. Como médico eu estava maduro, mas esse mercado exige um nível de amadurecimento pessoal que eu ainda não tinha”, reconhece.
Emendou a clínica em mais dois anos no Hospital das Clínicas, na USP, numa especialização em hematologia, combo que deixou seu currículo semelhante ao da formação americana em oncologia. Hoje não são os cânceres do sangue, mas os do sistema digestivo os de sua maior expertise.
De cabeça, Paulo Hoff conta 42 residentes todos os anos no Sírio e no Instituto de Câncer do Estado de São Paulo, um centro de excelência com atendimento pelo SUS que fundou como professor da USP. São oito no Sírio, o restante no Icesp. Nem todos viram diretores do Sírio-Libanês. Não que fosse maldizer um dos seus subordinados diretos, mas Hoff tem uma justificativa simples para o porquê de entregar o Sírio de Brasília, a primeira unidade do hospital fora da capital paulista, nas mãos de Gustavo: de todos os seus residentes, foi um dos melhores. “Se não o melhor”, emenda.
Hoff foi mentor de Gustavo, mas a relação fã-ídolo se inverte aqui e lá. Desde o ano passado, o paraibano equilibra as funções no Sírio com a presidência da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), trabalho pelo qual não recebe salário algum. A indicação foi de Hoff. Há quem já tenha ouvido do médico que ele entregaria a própria mãe de olhos fechados aos cuidados do colega.
Um dia normal na vida do médico começa no consultório às 8h e passa facilmente das 21h. Expediente de 12 horas ali é mato. Numa terça-feira de manhã, em pouco menos de duas horas de entrevista, o telefone tocou incansavelmente. “São pacientes que eu sei que estão bem, mas tenho que retornar já já”, agoniou-se. Como jornada de médico não acaba quando termina, o telefone funciona 24 horas por dia.
“Uma vez passei mal com uma medicação nova e liguei para ele para contar. Ele estava num congresso em Cancún e saiu no meio da palestra para me atender”, conta uma senhora, paciente de Gustavo desde a descoberta de um tumor no pulmão, há seis anos. Foi logo no início do tratamento. Pela frequência e entusiasmo com que repete a história, foi ali que ele a conquistou de vez. “Ele é uma excelência. É doutor mesmo, e não porque é médico, mas porque é diferente”, elogia.
Hoje, Gustavo atende em média de 250 a 300 pacientes por mês. Já foram 400. Nem assim é fácil encontrar um que lhe aponte algum defeito. A sinceridade, a atenção, a paciência e o jeito contador de histórias – dizem que dá para perceber quando ele se policia para não atravessar o horário da próxima consulta com a falação – são elogios recorrentes entre eles, atuais e já de alta. Um horário na sua agenda sai a R$ 450, um terço do valor cobrado por Paulo Hoff na matriz do hospital em São Paulo.
O trato com os pacientes, tão bem falado na praça, ele diz que aprendeu com Artur Katz, outro oncologista do Sírio, responsável direto pelo tratamento de Lula. Não é a favor de apunhalar os pacientes com as notícias ruins, mas não é de meias-palavras. Tampouco atende pedidos de familiares que suplicam para que ele não use a palavra “câncer” com o parente doente.
“A pessoa vai me perguntar se é câncer e eu vou dizer que é só um ‘tumorzinho’? Não, pô. Se a pessoa está lúcida, está consciente, ela tem direito de saber, se ela quiser. Mas você também não precisa agredir o paciente com a notícia. Ele não pode se sentir desamparado”, comenta.
Eu acredito muito naquela frase do ‘Pequeno Príncipe’, que diz que você se torna responsável pelo que cativa. Se você cativa o paciente nas horas boas, nas horas ruins você precisar estar lá com ele. Notícia boa é gostoso de dar. O duro é desenvolver um jeito de falar a verdade sem machucar as pessoas mais do que a doença já machuca.
Gustavo Fernandes
7 entre 10
Considerando as taxas de cura da doença, a parte boa – ele diz – é que de cada dez pacientes que entram no seu consultório, sete saem curados. “O outro lado é que três vão morrer”. Não existe, portanto, um momento em que a morte fica mais suave. “Hoje mesmo eu estava dizendo que queria pular dessa janela”, brinca. O consultório dele fica no primeiro andar – talvez quebrasse um braço, no máximo. “Eu não escolho de quem eu vou gostar. Sou humano. Também choro as perdas”, diz.
Mas as perdas e ganhos dos pacientes também lhe ensinaram muito. “Eu não tenho problemas. Falo isso para minha mulher. Esqueceu de pagar o cartão e vai vir com multa? E daí? Quer ver problema? Vem passar um dia comigo. Eu já tenho problemas demais no trabalho com os quais eu preciso me envolver. A minha vida pessoal eu tento levar de maneira tranquila”, reforça.
A esposa, Juliana, se vê obrigada a concordar. Não se lembra de ouvir uma vez sequer o marido se queixar de nada, diz que ele “é assim mesmo”. Os dois se conheceram na faculdade e se casaram pouco depois de pegarem os diplomas. Oftalmologista, ela tem uma agenda mais tranquila que a dele. Atende num consultório na Asa Sul, onde moram. À tarde, consegue passar um tempo com os filhos, de 5 e 2 anos. Às vezes, Gustavo não chega a tempo de vê-los acordados. Nem disso reclama. Sempre que podem, jantam juntos. “Ah, vida de médico é assim mesmo”, dá de ombros.
Na vida profissional e na pessoal, tudo certo. Mas como todo marasmo lhe coça as mãos e a especialização fora do país é um sonho antigo, deve se licenciar do consultório em 2017 para passar um ano trocando figurinhas no Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York, o mesmo onde Sérgio Simon se especializou lá nos anos 1970. “Quero ver o que estão fazendo lá fora. Sempre me decepciono porque não é tão diferente do que fazemos aqui. Mas preciso ver de perto.”
Gustavo é um otimista sobre a evolução do tratamento da doença nos próximos anos. Acredita que os sete pacientes que cura hoje talvez virem oito ou nove em médio ou longo prazo, nada para agora. Mas sobre se chegará o dia em que finalmente trataremos o câncer como quem trata uma gripe, o médico responde com uma história que aconteceu com ele. “Uma vez estava com um paciente e o filho dele no consultório. O filho, aflito, me perguntou: ‘Mas doutor, é grave? Tem cura?’. O pai respondeu: ‘Filho, a doença é a desculpa da morte’. É isso. Alguma coisa nessa vida vai ter que matar a gente”, diz.