Ex-moradora de rua cria rede de apoio a vulneráveis na pandemia
Juma Santos enfrentou prostituição, encarceramento e vida nas ruas. Hoje, ajuda quem passa por dificuldades semelhantes às que já viveu
atualizado
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Orfã na infância, Juma Santos vivenciou as três maiores situações de vulnerabilidade para mulher: encarceramento, prostituição e vida nas ruas. Hoje, em outra realidade, a brasiliense de 46 anos não ignora o passado, tampouco dá a sua luta por vencida. Ela ajuda quem passa por dificuldades semelhantes às que já viveu e não baixa a guarda, mesmo diante da pandemia do novo coronavírus.
Fundadora e coordenadora da Tulipas do Cerrado, uma organização sem fins lucrativos com o objetivo de amparar profissionais do sexo e moradores de rua do Distrito Federal, Juma se reinventou em meio à crise sanitária. “A Tulipas do Cerrado atua há 25 anos empoderando trabalhadoras do sexo e desabrigados. No entanto, na pandemia, tivemos de mudar. Passamos a prestar mais assistencialismo, com a doação constante de máscaras e cestas básicas. Afinal, antes de revolucionar a própria vida, as pessoas precisam estar saudáveis e bem nutridas”, declara a ativista.
Além dos equipamentos de proteção individual e das cestas básicas, ela e sua equipe de voluntários têm percorrido as ruas do DF para doar cartilhas de proteção contra o vírus, tickets de alimentação e camisinhas. Sua ONG, que também oferece tratamento psicossocial on-line, recebe o apoio de diversos doadores e de movimentos como a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), projeto para qual Juma literalmente veste a camisa em gesto de gratidão.
O trabalho da ativista ainda é reconhecido pela Universidade de Brasília (UnB), instituição de ensino para qual ministra palestras regularmente, e por personalidades como Rogério Barba, referência quando o assunto é direitos humanos na capital. “O trabalho da Juma é fantástico. Me ajudou quando eu estava em situação de rua. Atualmente, retribuo o apoio com doações para a Tulipas”, conta Barba, ex-morador de rua e sobrevivente do crack.
A prostituta Fernanda Oliveira, de 32 anos, revela as dificuldades da profissão na pandemia. “Costumava tirar R$ 5 mil por mês. Agora, não passo dos R$ 1,5 mil. Tenho marido, quatro filhos e dois cachorros para alimentar”, lamenta.
Há 15 anos na profissão, ela diz estar enfrentando o pior momento profissional. “Em geral, os clientes não ligam para o vírus. Quem precisa se preocupar é a gente. Faço o que posso: uso máscara, aplico álcool em gel e evito posições frontais”, detalha.
Ela descreve o apoio de Juma como essencial durante o surto de Covid-19. “Difícil falar da Juma sem me emocionar”.
Em dado momento da entrevista, Juma faz questão de frisar que as profissionais do sexo amparadas por ela não escondem o rosto, nem mesmo têm a face censurada nas redes sociais da ONG. “Ensino isso a elas. Ser garota de programa não é motivo de vergonha. Elas são trabalhadoras e alimentam suas famílias por meio dessa profissão, que é legalizada, apenas não regulamentada”, esclarece. Ela ainda ressalta que as prostitutas têm acesso, por exemplo, a aposentadoria pelo INSS. “Muitas desconhecem seus direitos”, lastima.
Infância atropelada
Símbolo de superação para quem enfrenta dificuldades semelhantes às que já viveu, Juma Santos nasceu Gilmara e passou a infância em Alexânia, um município no interior de Goiás a 88 km da capital federal. Filha única, ela morava com a mãe, conhecida como dona Inês, em uma casa de poucos metros quadrados. Analfabeta, a senhora ganhava a vida lavando roupas e vendendo pamonhas no terminal de ônibus. Apesar da pouca escolaridade, ela compreendia bem a importância do ensino. Com a ajuda de um padre, matriculou a filha em uma escola de freiras a poucos passos de casa.
A infância de Juma no interior foi interrompida abruptamente quando dona Inês foi atropelada e morta por um caminhão. Curiosamente, a avó da brasiliense, que tinha problemas com alcoolismo, também morrera de maneira similar. Amedrontada e sem parentes por perto, a menina decidiu pegar uma carona rumo a Brasília com o intuito de fugir dos assistentes sociais. “Tinha medo de orfanato. Achava que era lugar de criança má”, recorda-se.
Juma chegou à Rodoviária de Brasília em 1985, com apenas uma muda de roupa, alguns documentos e recordações da mãe. Tratou logo de procurar um colégio para se matricular, a fim de honrar o desejo de dona Inês de vê-la graduada. Conseguiu vaga na escola da 104 Norte após amolecer o coração de uma diretora, que aceitou fazer a matrícula dela sem assinatura de um tutor.
À noite, Juma dormia com apenas um cobertor nos bancos do Hospital Regional da Asa Norte (Hran). Foi quando conheceu a violência das ruas e sofreu agressões gratuitas. “Cheguei a dormir na copa de árvores e dentro de bueiros para não atirarem fogo em mim”, revela.
O primeiro beijo, rememora, foi com um colega de classe de “olhos muito verdes”. Mais cedo naquele dia, o garoto havia perdido uma brincadeira cuja punição era beijar o ‘patinho feio’ da escola. Devido ao bullying e à dificuldade de frequentar as aulas, Juma deixou a escola na 6ª série.
Prostituição e encarceramento
Aos 13 anos, Juma perdeu a virgindade. Aos 16, entrou para o mundo da prostituição por incentivo de Madonna, uma garota de programa que comandava as noites do Conic.
“Ganhei 5 mil cruzeiros pelo meu primeiro programa. Fiquei encantada por aquele dinheiro. Eu já estava acostumada a ter relações sexuais violentas, então, curti a ideia de lucrar em cima disso”, confessa.
Ela engravidou ainda na adolescência, dando à luz uma menina. Antes de dormir, Juma colocava um pedaço de madeira sobre a cabeça para garantir a proteção das duas. Certa vez, o pedaço de madeira foi usado contra um homem que, segundo ela, levantou o vestido da filha.
“Tentaram violar minha filha e eu quase matei o cara para defendê-la”, diz. A hoje ativista acabou presa e enviada para a Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PF-DF), a Colmeia. Ela alega ter sofrido mais no sistema penitenciário do que na rua. “Você passa por várias violências na rua, mas a liberdade proporciona algumas saídas”, justifica.
Ela ficou 2 anos e 8 meses encarcerada, período em que sofreu abstinência das drogas. “A merla, a cola e o tíner me ajudam a sobreviver às agressões e foram fundamentais para a minha sobrevivência junto a outras crianças sem-teto do Plano Piloto”, conta. “Você vê uma mulher fumando crack e passa a julgá-la instantaneamente, sem saber que aquela pedra é o melhor momento do dia dela. Precisamos olhar para os outros com mais empatia, sem culpabilizar os usuários”, acrescenta. Antiproibicionista, Juma está à frente da ala feminista da Marcha da Maconha de Brasília.
Sua filha foi adotada por uma mulher que já tinha dois filhos, mas queria uma menina e cuidou dela mesmo após Juma ser liberada. “Hoje, tenho um neto e uma boa relação com ambos”, celebra.
Momento de virada
Solta, Juma acabou voltando para a rua. “O Estado é assim: te prende e depois te joga na rua”. No primeiro dia em liberdade, rumou para o Conic, “o centro de seu mundo”. Lá, tomou uma cerveja gelada e matou a saudade dos amigos. Pouco depois, conheceu Marcus Renaldo em uma barraquinha do Conic que vendia cachorro-quente para as prostitutas. Viu no servidor público criado em família de militares uma oportunidade.
“Ele nunca foi meu cliente. Sempre enxerguei o Marcus como um investimento a longo prazo. Continuo fazendo programa para complementar a renda familiar quando necessário, e ele aceita. Me apoia em tudo que faço. Estamos juntos há mais de 20 anos”, sorri.
Certa noite, enquanto fazia programa, um homem a abordou com uma proposta diferente. “Ele perguntou se eu queria um trabalho. Logo eu, sem segundo grau, com dentes faltando na boca, ex-presidiária, moradora de rua. ‘Que emprego é esse, doido?’”.
O homem era Claudiney Alves, um dos primeiros redutores de danos de Brasília. Ele enxergava Juma como uma figura de liderança entre seus pares da rua, vendo nela uma oportunidade de alcançar mais pessoas. A visão foi certeira. Poucos anos mais tarde, a brasiliense criou a própria ONG e, agora, estende a mão para milhares de pessoas vulneráveis pela cidade.
Atualmente, Juma mora com Marcus e a fiel escudeira Preta, uma vira-lata resgatada, em uma casa na Vila Planalto.
Apelidada de incansável, a ativista se emociona apenas ao falar sobre a felicidade em ajudar ao próximo. “É o que me move”. Recentemente, ela também estreou uma série sobre profissionais do sexo na pandemia. A sequência será publicada nas redes sociais do Tulipas do Cerrado.
Veja:
Doações
Para contribuir com a projeto de Juma, acesse as redes sociais do Tulipas do Cerrado ou entre em contato pelo número: (61) 98223-1975.