Eu vivi: sem beber há 27 anos, aposentado conta história de superação
Raposo, como é conhecido no Alcoólicos Anônimos, foi internado até em sanatório para cuidar do problema com álcool até que decidiu parar
atualizado
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Raposo*, 73 anos, não gostava nem de cerveja mas, ao chegar em Brasília, sozinho, procurou um bar. Costuma dizer que o álcool encontrou nele a predisposição para o alcoolismo. Assistiu, de camarote e com um copo na mão, a bebida controlar sua vida, suas finanças, a relação com a família. Controlou tudo, até sua cabeça. Foi internado em um sanatório, perdeu tempo, e, aos 45 anos, decidiu que precisava voltar ao volante e virar a vida de cabeça para baixo.
Com ajuda do Alcoólicos Anônimos, não bebe uma gota de álcool há 27 anos. Nem a taça de espumante para brindar o ano-novo, nem o bombom de licor para adoçar a boca depois do almoço. Continua indo às reuniões semanalmente e, aposentado, decidiu usar o tempo livre para ajudar outros que tem histórias parecidas com a dele. É voluntário na sede do AA e não se incomoda em olhar para trás. O passado é referência.
“Costumo comparar o vício em álcool com um motorista viajando de carro, que decide não fazer paradas para economizar tempo. Depois de alguns quilômetros, entretanto, ele sente sede, mas determinado, não interrompe o percurso. Uma hora, bate o desespero, e o piloto encosta o veículo para comprar uma água. Resolve o problema da sede rapidamente.
A sede do alcoólatra é mais ou menos assim, só que completamente insaciável. No próximo posto o motorista faz mais uma parada para beber de novo. E a cada gole que toma, mais vontade dá. Está aí a crueldade da doença.
Nasci em Minas Gerais, em uma cidade chamada Itueta, no Vale do Rio Doce. Deixei minha família e vim para Brasília em 1967 procurar emprego. Quando cheguei aqui sozinho, a cidade só havia comemorado sete anos de vida. Tinha poucas chances de achar companhia e talvez isso tenha contribuído para que eu procurasse lazer nos bares.
Comecei a gostar de cerveja aos 20 anos. Antes tomava alguma coisa esporadicamente, como uma dosezinha de pinga com limão só para acompanhar os colegas. Quando cheguei aqui, meu alcoolismo começou a ficar sério, mas me considerava um bebedor social. De gole em gole, entretanto, descobri uma predisposição para o vício — meu pai e meu avô eram alcoólatras.
Após dez anos vivendo essa rotina, percebi que bebia diferente dos colegas. Era sempre um pouquinho a mais. Mas achava até uma vantagem: era melhor que eles, bom de copo e os achava todos uns fracos. Na época, álcool ainda não estava me atrapalhando muito, dava só umas reclamações em casa e às vezes passava mal na segunda-feira, mas dava para tocar o barco.
No trabalho, passei a não conseguir manter o nível de produtividade. Não crescia na empresa e via outros companheiros, que eu tinham entrado depois de mim, passarem na minha frente. Quando comecei a perder dias no trabalho, complicou mais.
Precisava arranjar um jeito, mas não pensava em parar de beber, queria descobrir uma forma de tomar uma socialmente. Já estava dependente do álcool e não sabia. Até que minha esposa decidiu não ia aceitar mais o meu vício.Tentando sozinho parar, fui em vários especialistas, psicólogos, psiquiatras. Quando recebia alta, na mesma semana começava de novo. Foram sete internações. Me hospitalizei em casas de repouso, mas os próprios médicos me indicaram para a psiquiatria. Cheguei a ser internado, por pouco tempo, no HPAP, onde colocam as pessoas que, como dizem, “estão ficando doidas” e assim também parei em um sanatório em Anápolis.
Um dos momentos mais marcantes aconteceu em uma véspera de Natal que passei no hospital. Nunca havia deixado de levar brinquedos para os meus filhos na época de festas, nem no auge do vício. Mas escutar as pessoas comemorando enquanto eu estava deitado sozinho no sanatório, sem poder abraçar as minhas crianças, reforçou a ideia de que, quando saísse dali, precisava fazer uma mudança radical na minha forma de viver.
Conheci o Alcoólicos Anônimos aos 36 anos por meio de um amigo. Lá, ouvi pela primeira vez que alcoolismo é doença. Sempre acreditei ser um problema moral: se eu tivesse força de vontade, podia parar a hora qualquer hora. Não é assim. Quando a gente toma uma socialmente, bebe por prazer. Quando chega no nível do alcoolismo, bebe por necessidade. Entrei no AA querendo aprender a beber, mas lá me explicaram que eu precisava aprender a parar. Fui, mas não fiquei. Queria controlar o vício sozinho.
No dia 6 de janeiro de 1990 voltei para o AA. Tinha 45 anos e estava recém-saído do sanatório. Hoje, não bebo há pouco mais de 27 anos. No Alcoólicos Anônimos não tem tratamento físico, é psicológico. Escutamos depoimentos de pessoas que já passaram por isso. Graças a esse apoio posso dizer: consegui.
O segredo para parar de beber é nunca mais tocar em álcool, evitar o primeiro gole, pois ele dispara o mecanismo do alcoolismo e a compulsão. O mais importante é frequentar as reuniões. Até hoje, procuro ir a um encontro por semana para tentar ajudar, com a minha história, outras pessoas .
A gente fica achando que ir em uma festa sem beber não tem graça, mas o que não tem graça é não lembrar de metade da festa, ficar inconveniente. Hoje eu sei que a vida não tem sentido bebendo. É preciso estar sóbrio.”
*Nome fictício. Um dos pontos mais importantes no Alcoólicos Anônimos é, claro, o anonimato.
Conhece alguém que precisa de ajuda? Ligue para a central do Alcoólicos Anônimos para saber mais sobre as reuniões que acontecem na sua região: (61) 3226-0091