Entenda o que é privilégio branco e porque o termo está em alta
Especilista explica origem do termo e sua associação com os recentes protestos nos EUA e no Brasil
atualizado
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João Pedro Mattos Pinto tinha apenas 14 anos. Morador do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, o adolescente brincava com amigos no quintal de casa, no dia 18 de maio, quando foi morto em uma operação policial. O menino alertou que só crianças estavam no local, mas ainda assim os policiais dispararam 60 tiros de fuzil.
Exatamente uma semana depois, no dia 25 de maio, em Minnesota, nos Estados Unidos, George Floyd, de 46 anos, foi parado na rua por policiais. Ele havia sido acusado de usar uma nota falsa para comprar um maço de cigarros. Algemado, foi mantido no chão, com o joelho de um policial, branco, em seu pescoço, por quase 10 minutos. Antes de falecer, avisou aos policiais que não estava conseguindo respirar, mas foi ignorado.
Os assassinatos dos dois, que tinham em comum a cor da pele, têm gerado uma série de manifestações no mundo. E levantado discussões sobre vários aspectos relacionados à causa antirracista. Entre elas, o privilégio de não ser constrangido ou abatido pela polícia como um potencial criminoso, por ser negro. De acordo com o IBGE, a população negra tem 2,7 mais chances de ser vítima de assassinato do que os brancos.
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Opinião
A historiadora e ativista Marjorie Chaves, coordenadora do Observatório da Saúde da População Negra (Nesp-Ceam/UnB) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, explica que o termo privilégio branco viralizou porque o reconhecimento das vantagens materiais e simbólicas de pessoas brancas é indissociável do processo de consciência e enfrentamento do racismo.
“Muitas pessoas brancas acreditam que, quando falamos em privilégio branco, estamos nos referindo a uma vida de luxo e riqueza e negando esforços de superação das dificuldades. Não se trata disso, o privilégio branco é a ausência das consequências negativas do racismo e o quanto isto proporcionará oportunidades que, muitas vezes, são imperceptíveis pelos brancos”, analisa.
Ela elenca alguns exemplos do que seria esse privilégio. “É poder entrar em uma loja e não se sentir vigiado por um segurança, ligar a TV ou abrir uma revista e se ver representado nela, não ser violentado pela polícia porque foi ‘confundido’ com um criminoso, concorrer à uma vaga de emprego e saber que será avaliado pela sua formação acadêmica e experiência profissional e não pelo seu fenótipo”, pondera.
Na avaliação de muitos ativistas, possuir o privilégio branco não significa, necessariamente, ser racista. Na opinião de Marjorie, contudo, não é bem assim. A famosa frase “mas a culpa não é minha”, por exemplo, pode ser uma forma de exercer e perpetuar o preconceito.
“Pessoas brancas não costumam se ver racializadas, se veem como sujeitos e isto influencia na forma com elas lidam com o racismo, considerando um ‘problema de negros’ e de indígenas. Também o fazem pela negação, quando afirmam que no país ‘não existem brancos puros’ e por isto o racismo não existiria. No entanto, não estamos falando de ‘pureza racial’, estamos falando de fenótipo e esta forma de ‘jogar’ com a racialidade, também é privilégio branco”, analisa a ativista.
Privilégio pode ser ferramenta de luta
Nos protestos contra o assassinato de George Floyd, uma estratégia foi observada para tentar conter a violência da polícia: pessoas brancas formaram uma barreira entre manifestantes e policiais.
“Essa é uma tática importante para organização: deixe com que as pessoas negras liderem, mas ofereçam seus corpos pois vocês [brancos] têm menos chances ser mortalmente feridos – especialmente se as coisas estiverem sendo filmadas”, disse um manifestante via Twitter.
Segundo Marjorie, esse é apenas um exemplo de como pessoas brancas podem usar seus privilégios em prol da luta antirracista.
“O racismo é um problema a ser superado por toda a sociedade e é fundamental que pessoas brancas compreendam isto e se envolvam, ao invés de esperar que negros se responsabilizem sozinhos por uma violência que não criaram. Existem várias formas de contribuir com o antirracismo: procurar compreender o que é, duvidar da neutralidade branca, reconhecer privilégios e ter atitudes proativas de combate do racismo”.
Diferenças entre os protestos do Brasil e dos EUA
Apesar de parecerem similares e terem se inflamado após a execução de João, no Brasil, e George, nos Estados Unidos, a historiadora destaca que os protestos têm características distintas. E explica quais são elas para quem quer se aprofundar no assunto.
“Como ativista feminista negra, acredito que estamos falando de experiências diferentes. As manifestações antirracistas deflagradas com o assassinato de George Floyd são uma resposta à violência racial histórica herdada do período colonial. É um sinal de basta”, avalia.
“Em toda a América o racismo é estruturante das relações sociais e, por isso, há similaridades entre a forma como ele se manifesta lá e aqui por meio das forças do Estado. No Brasil, porém, o assassinato de homens, mulheres e jovens negros como João Pedro, morto em operação policial em São Gonçalo no Rio de Janeiro, causa uma certa indignação, mas não o suficiente para que pessoas brancas tenham atitudes proativas de combate do racismo”, acredita.
“As manifestações antifascistas que ocorreram em algumas capitais do Brasil têm foco político na oposição ao discurso de extrema-direita e sua expressão de forte controle autocrático, oposto aos ideais de democracia. As manifestações nos EUA são exclusivamente antirracistas e referem-se às lutas de resistência do povo negro desde o período colonial. O fascismo, embora tenha como referência a supremacia branca, é um movimento recente que data do início do século XX. Portanto, trata-se de manifestações não excludentes entre si, mas completamente diferentes”, conclui.