Educadores e famosos se unem para ajudar alunos da rede pública no Enem
Voluntários dispostos a ajudar estudantes a se prepararem para o exame viralizam no Instagram. Iniciativa é válida, mas de alcance limitado
atualizado
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“Se você é aluno da rede pública, está sem aula e não consegue estudar para o Enem, eu me disponibilizo a te ajudar sem nenhum custo”. Diante da decisão do Governo Federal de manter a realização do Exame Nacional do Ensino Médio para novembro deste ano, comunicados como esse passaram a ser divulgados por professores e universitários de todo o Brasil nas redes sociais.
A corrente do bem visa ajudar, pelo menos em parte, estudantes que ainda não sabem como vão se preparar para a prova, uma das principais portas de entrada para as universidades públicas e privadas do país.
Em meio à epidemia do coronavírus, escolas fecharam as portas em todo os estados e so voltaram às aulas on-line. Ainda não há previsão de retomada. A estimativa do Conselho de Secretários Estaduais de Educação (Consed) é de que mais de 80% dos alunos do Ensino Médio estejam sem aulas.
Para organizações, especialistas e docentes, a manutenção do calendário acirra as condições de desigualdade para acesso ao ensino superior. O principal – mas não único obstáculo – é a falta de acesso dos estudantes mais pobres ao ensino a distância.
Um estudo realizado pela Casa Fluminense – organização que estuda a vida urbana nas periferias – revela que mais de 2,3 milhões de candidatos ao exame, cerca de metade dos inscritos, não têm computador em casa.
Corrente do bem
A falta de acesso à tecnologia ainda é um obstáculo para o trabalho dos voluntários. Em tempos de isolamento, eles não têm como chegar a quem precisa sem a ajuda da internet. Contudo, a ideia da corrente é ajudar no que for possível, mobilizar mais pessoas e sensibilizar o Estado sobre a importância desses recursos.
“Com certeza não é a solução, mas um começo. Sinto que com tanta gente disposta a ajudar, muitos alunos se sentirão abraçados e mais confiantes”, contou Nick Câmara, acadêmica de engenharia civil e uma das idealizadoras do Quarentenáticos.
O projeto iniciado por Giovanna Coimbra, atriz e graduanda em engenharia, visa produzir conteúdo sobre matemática para os estudantes por meio do Instagram, e inspirou até mesmo pessoas de outras áreas, como Giulia Bertolli, filha de Lília Cabral.
Em um post que viralizou nas redes sociais e ganhou destaque na imprensa, a jovem atriz anunciou ser graduada em letras e contou que, inspirada por Giovanna, resolveu se disponibilizar para ajudar e tirar dúvidas.
“A ideia surgiu do meu período de pré vestibular, no qual eu já organizava alguns grupos de estudo para ajudar meus amigos com matemática para o Enem”, lembra Giovanna.
“Com o momento em que estamos vivendo, acredito que nosso senso de coletividade precisa estar exacerbado. As necessidades são as mais diversas e, com certeza, ainda maiores do que o nosso projeto pode abraçar, mas é sobre fazer algo minimamente dentro do seu raio de alcance”, explica Giovanna. Além de futura engenheira, ela atuou, recentemente, na novela Bom Sucesso.
“Pensando em minimizar esses impactos de forma prática, eu e Nick, nos juntamos e criamos uma página dentro de uma plataforma que permite poder agregar e ajudar o maior número de pessoas”, acrescentou.
Nick explica que as duas elaboraram um formulário para entender quais são as principais dúvidas e dificuldades dos seguidores. Com as informações, publicarão um cronograma de estudos e PDFs com resumos e exercícios. E têm intenção de ajudar respondendo perguntas mais específicas, que eventualmente cheguem à página.
“Queremos fazer de forma mais clara e prática possível para facilitar e vida desses estudantes. Somos duas pessoas que já passaram por isso e sabemos como é importante essa praticidade”, afirmou Nick.
Aulas de redação
A brasiliense Itamara Cunha, de 25 anos, teve contato com uma pulicação semelhante e não pensou duas vezes antes de abraçar a iniciativa. Nesta semana, ela publicou um post em que se disponibiliza a ajudar alunos de escola pública que se sintam “prejudicados pela pandemia”.
A jovem ajudava gratuitamente os alunos de baixa renda há algum tempo. “Com essa grande ação de educadores, me senti inspirada e com mais vontade de fazer a diferença”, justifica. “Acho que nós educadores, que de fato nos preocupamos com a oferta de um ensino público de qualidade, acabamos por nos inspirar uns nos outros. É uma corrente que se fortalece a cada dia, não só no DF mas no Brasil todo”.
Formada em Letras pela Universidade de Brasília, Itamara trabalha, atualmente, como professora de redação para alunos do Ensino Fundamental do Centro Educacional Stella Maris, localizado em Taguatinga.
Durante a pandemia, ela continua produzindo conteúdo para os alunos e se colocou à disposição para ajudar quem está sem aulas com as disciplinas de redação e repertório sociocultural.
Os alunos podem escrever o texto em uma folha pautada, como de caderno, e enviar a foto. “Isso é interessante porque eu posso avaliar também os aspectos estéticos do texto, como margem e rasura. Eu leio linha por linha, e vou anotando o que achar inadequado e, também, o que está bem colocado. Depois, formulo um documento, áudio, ou ligo para dar um feedback“, explica.
Quando o conteúdo é repertório sociocultural, por exemplo, a voluntária prefere chamada de vídeo. Assim, pode “mostrar os livros, textos, conversar bastante, trocar ideias, possibilidades de tema… Eu faço com duas alunas e é muito gratificante”, salienta.
Apesar do esforço para ajudar os alunos, a educadora ainda acredita – e torce – pelo adiamento da prova.
“Sempre foi uma disputa muito injusta. No cenário atual, os alunos da rede privada permanecem tendo aula, seja por meio de vídeos disponibilizados pelos professores, pelo Google Meet ou por alguma plataforma da instituição. Os alunos de escola pública estão com as aulas suspensas“. “Quando muito, eles têm acesso a uma ou outra videoaula. Hoje é muito nítida a discrepância do acesso a educação, me doi muito enquanto educadora”, conclui.
Aulas de história
A publicação que chegou até a brasiliense e lhe motivou a integrar a ação é da professora de história carioca Clara Marques, de 23 anos.
Ela já usava seu perfil na rede para disponibilizar dicas e materiais de estudo aos próprios alunos, mas resolveu tornar o material mais democrático diante da manutenção do Enem. “Vi outras pessoas fazendo e decidi reproduzir no meu perfil. Além do resumo de conteúdos mais complexos, faço lives com temas ligados à história e respondo todos por direct“, comenta.
Assim com as outras fontes ouvidas pelo Metrópoles, Clara sabe que não vai conseguir atingir todos que precisam com seu trabalho. Ela, porém, espera que o governo repense a realização da prova. “A exclusão digital é muito prejudicial nesse momento marcado pela pandemia. Fora isso, ainda não conseguimos chegar nesses estudantes de forma organizada e articulada. É um perfil no Instagram, uma iniciativa voluntária, muito válida e importante, mas que não não substitui a escola e as necessárias políticas públicas pra lidar com essa situação.”