Com projetos inovadores, professores e alunos lutam por ensino melhor
Esqueça o colégio tradicional, onde o professor manda e o aluno obedece. Na escola do futuro, professor tem que ouvir o estudante e os temas vão muito além de teoremas e fórmulas decoradas de matemática
atualizado
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De calça jeans, tênis e camiseta e com um sorriso largo, mas meio tímido, o professor de história Jefferson Andrade Prado, 37 anos, recebe a reportagem do Metrópoles. É uma manhã de quinta-feira no Centro de Educação Nery Lacerda, uma escola particular em Sobradinho II, e o som ambiente é o típico de corredor de escola. Centenas de vozes agudas eufóricas falando ao mesmo tempo.
Quando foi contratado, há três anos, Jefferson recebeu uma missão: melhorar as notas dos alunos em matemática e história. Os “cine debates”, sessões de filmes que tinham relação com a temática da aula, ajudaram, mas não chegaram nem perto do que professor e coordenação esperavam. Casas de Engenho, Roma Antiga, coisas assim, diz Jefferson, não despertavam o interesse em gente que já nasceu na era de Steve Jobs. Assim, resolveu quebrar de vez os protocolos.
“O que vocês acham que deve ter a nossa aula de história?”. É mais simples do que parece, mas vale muito. Jefferson quis ouvir seus alunos. A resposta para o fim das notas baixas não estava nas academias, nos livros de estudiosos da educação ou em ordens vindas da direção. A solução estava nos próprios alunos, vozes muitas vezes abafadas por modelos obsoletos de educação que regem que o professor sabe tudo e o aluno, nada. Um detém todo o conhecimento, o outro é folha de papel em branco. Só que é 2016, tempo de derrubar tabus e paradigmas. Os do ensino, inclusive.
A hora e a vez do aluno
O caminho adiante, dizem os especialistas, é mais horizontal. O aluno também produz conhecimento – quem não, com tanta tecnologia à disposição?. E tem poder dentro da sala de aula. É raro hoje, mas acostumem-se. A escola do futuro é democrática e o conhecimento partilhado, em vez de “injetado”.
“Hoje, vivemos na chamada sociedade do conhecimento, na qual a escola assume a centralidade por ser a instituição que sistematiza o conhecimento”, analisam as professoras Danielle Nogueira e Camila de Almeida Santos, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. “Mas, com ênfase no conhecimento que o aluno desenvolve, o ensino se coloca à frente dos desafios para lidar com um novo modelo de sociedade, que pede um indivíduo com capacidade de comunicação, interação, colaboração e autonomia, diferente do que a escola tradicional forma”.
Significa que o aluno está reivindicando o seu espaço. Não é só assinar a lista de presença e se dar bem em uma prova de vestibular. É aprender, no mais amplo sentido da palavra. O desafio maior é fazer “gente grande” ouvir o que essa galera está pedindo. Mesmo no caso de Jefferson, do Cenel, não foi tão simples. Eles queriam jogar videogame. E lazer e escola nunca combinaram muito.
“E se a gente jogasse Minecraft?”, eles pediram. “O que é Minecraft?”, foi a primeira reação do professor. O jogo eletrônico permite que o jogador construa mundos inteiros empilhando blocos e os realocando se for preciso. É uma espécie de Lego dos tempos de realidade aumentada. Depois de construir, os jogadores podem batalhar uns contra os outros. Vence aquele que ficar “de pé”.
“De jeito nenhum”, foi o que Jefferson disse aos alunos. Imagina como seria explicar aos pais que os valores altos das mensalidades estavam indo embora em horas de videogame. Ou que eles teriam que desembolsar ainda mais dinheiro comprando consoles e o jogo, que passa dos R$ 100. As barreiras pareciam maiores do que as possibilidades. E olha que Jefferson sempre foi fã de videogame. E de história. Só nunca tinha visto um casamento entre as duas coisas em sala.
Era véspera das férias de julho. Durante o recesso, um grupo de alunos se empenhou em agilizar as soluções para as barreiras impostas pelo professor. “Nós, adultos, só enxergamos os problemas”, reflete o educador. Um a um, os impedimentos foram caindo. Em vez de um jogo para cada, eles trabalhariam em grupos. Assim, além de estimular a interação entre os alunos, a escola não precisaria arcar com os custos de adquirir várias licenças do jogo. Na volta, a primeira aula foi sobre direitos autorais.
“A primeira semana foi assustadora. Eu achei que não daria certo. Era uma bagunça, eles não se entendiam”, lembra o professor. “O processo passou por uma construção também de como eles se comportariam”. Jefferson combinou com os alunos que, das três aulas semanais de história, duas dariam conta do conteúdo e uma seria dedicada ao jogo. Os alunos do 6º ano do ensino fundamental construiriam os templos romanos e os do 7º, casa-grande e senzala.
Em pouco tempo, o professor virou espectador do projeto dos alunos. Os grupos sincronizaram-se e iam alternando as funções – o projetista virava construtor, o construtor virava líder e os mídia, dois alunos com funções de registrar em vídeos no celular tudo o que acontecia nas aulas, revezavam-se. Quem não sabia o conteúdo, tratava de aprender para construir os blocos da maneira correta. Nos dias das aulas teóricas, chegavam adiantados, com os capítulos lidos e planejando de antemão o que construiriam.
Dos 22 alunos com notas baixas na disciplina em 2014 não ficou nem sombra. O número foi a zero. E mais: no momento de batalhar – só uma das quatro construções ficaria de pé – deram para trás. “Eles ficaram com dó de destruir o que construíram ao longo do semestre”, conta Jefferson. As lágrimas nos olhos do professor denunciam que ele compartilha do mesmo sentimento dos alunos.
A iniciativa de Jefferson – ou melhor, dos alunos – foi reconhecida no ano passado pelo desafio “Criativos da escola – Design for change”, um projeto do Instituto Alana, ONG dedicada à infância, que premia iniciativas de transformação no ensino. O projeto está em 30 países. No Brasil, chegou há três anos. O desafio de 2015, que premiou cinco escolas, foi o primeiro. Foram 419 inscrições. Jefferson estava em sala de aula quando saiu o resultado. Saber que estavam entre os 50 primeiros já tinha sido uma experiência surreal. Mas ganhar o prêmio foi “choro coletivo”.
Que escola você quer para o futuro?
O grito de comemoração de Jefferson e dos alunos pelo reconhecimento é um grito solitário, ecoado por poucos – mas crescentes – educadores. Gente disposta a romper com os modelos vigentes.
“Hoje existem diversos movimentos nas escolas no sentido de formar sujeitos transformadores. Estamos num momento de ruptura do ensino tradicional”, avalia Carolina Pasquali, coordenadora do Criativos da Escola, que premiou Jefferson. “Existe uma mentira aí de as escolas acharem que isso dá mais trabalho. Mas trabalho dá tentar mobilizar uma turma desinteressada”, diz.
Um dos pilares do Criativos, que pesou na escolha dos cinco premiados, foi justamente o fato de o projeto ser idealizado e liderado pelos alunos. Ouvir que escola eles querem, em vez de empurrar uma pré-moldada goela abaixo. Foi-se o tempo da palmatória, dizem por aí, e também o do aluno calado. Aluno contrariado hoje, não leva bilhete anotado na agenda para casa. Ele vai à luta. Tome-se o exemplo da ocupação das escolas da rede pública de São Paulo no fim do ano passado.
Depois do estado anunciar que 94 escolas seriam fechadas e 1 milhão de alunos transferidos – ação chamada pelo governo de “reorganização escolar” – estudantes dos ensinos fundamental e médio ocuparam mais de 200 escolas em SP contra a decisão. Enquanto protestavam, recebiam professores voluntários para aulas de música, feminismo, teatro e temas que, embora não estejam na grade curricular, estão na vida. Eles querem a escola do jeito deles, com assuntos relevantes a eles.
A maneira que nós, alunos, encontramos para que fôssemos ouvidos foi ocupar as escolas. E estamos com mais cultura e educação do que se estivéssemos seguindo o currículo antiquado do Estado. (…) Estamos organizando saraus, dinâmicas de grupos, conversas sobre assuntos variados, palestras, capoeira e tantas outras coisas que jamais pensei vivenciar dentro da escola.
Estudante Vitória de J. Monteiro Leite, de 16 anos, em um editorial ao jornal El País em dezembro passado.
A polícia reprimiu os adolescentes com brutalidade. Entidades de direitos humanos e da infância e adolescência se posicionaram contra a ação truculenta. Ficou feio. O governo retrocedeu na reorganização. Mas os protestos escancararam uma situação que andava sendo empurrada com a barriga até então: o ensino tradicional já não dá conta do que essa turminha quer. É passado.
E não são só os alunos das ocupações que estão dizendo. O Google e a revista The Economist também acham. A gigante de tecnologia e a Unidade de Inteligência da publicação se uniram em uma extensa pesquisa com executivos, professores e alunos para comparar as habilidades requeridas pela sociedade moderna e o mercado de trabalho versus o que é ensinado nas escolas. O resultado virou o relatório “Agenda de habilidades: preparando estudantes para o futuro”, divulgado em abril de 2015.
Solução de problemas, trabalho em equipe e comunicação são as habilidades mais exigidas no ambiente de trabalho, segundo a pesquisa, assim como fluência digital, empreendedorismo e criatividade. O que os professores disseram, no entanto, é que o currículo atual é tão fechado que eles não têm tempo de abordar esses temas. “Ao mesmo tempo, os jovens estão mais confortáveis em aprender sozinhos, especialmente tópicos do seu interesse: 62% dos professores dizem que os alunos estão ficando mais independentes e capazes de reunir informações sozinhos”, diz o relatório.
E quando a gente dá voz a eles?
Claro que esse tipo de independência e empoderamento fica mais evidente tão logo eles se “enturmem” com um tablet ou um smartphone – o que acontece cada vez mais cedo. Mas logo nos primeiros dias de escola eles já têm opinião, e querem sim ser ouvidos. Basta um ouvido atento. No caso, o da professora Mariana Ferreira, do Jardim de Infância 603 do Recanto das Emas.
Os alunos de Mariana têm em média 4 anos. Todos os anos ela leva um projeto para a sala de aula. No ano passado, queria contar histórias de princesas. “Elas gostam de princesas, brincam de ser princesa. Toda menina quer ser princesa”, diz a professora. O método da professora já começa diferente do da maioria. Ela tem o costume de organizar “rodinhas de conversa” com os pequenos. Cada um leva uma pergunta de casa. Ela anota, pesquisa, e volta com a resposta.
Um dia, em uma dessas rodadas, se surpreender com uma pergunta. “Professora, existe princesa negra?”. Grande parte dos alunos no jardim de infância onde ela trabalha é negra. A aluna autora da pergunta, no entanto, era ruiva. “Acho que ela se percebia diferente daquelas princesa e queria, na verdade, saber se existiam outras princesas diferentes daquelas que ela conhecia”, avalia Mariana.
Sem reposta, lá foi Mariana pesquisar. Não foi fácil. Dezenas de mensagens pela internet e ligações para editoras depois – esse tipo de coisa não está nas prateleiras das livrarias – reuniu sete livros de contos com protagonistas, princesas ou heroínas, negras. Nasceu o projeto Princesas Negras.
Aos poucos, meninas e meninos foram se reconhecendo nas ilustrações. As histórias vieram acompanhadas de atividades lúdicas. Mariana preparou uma caixa com adereços, como turbantes, para que as crianças brincassem de viver os personagens dos livros. Se uma princesa usava tranças, eles trançavam os cabelos. Se usava turbante, aprendiam a amarrar os panos.
A educadora e o seu projeto, que nasceu a partir da inquietação de uma aluna, foram reconhecidos pelo Ministério da Educação no ano passado na etapa centro-oeste do Prêmio Professores do Brasil, que divulga e premia trabalhos da rede pública que contribuam para a melhoria da aprendizagem. E, no caso de Mariana, que rompam um pouquinho o muro entre professor e aluno. “Precisamos ouvir o que está no centro de interesse deles. Hoje o aluno sabe muito. O professor tem que se planejar para a aula, mas eu tento escutá-los para que o que eles querem esteja dentro do meu planejamento”.