Com Carnaval cancelado, como fica a saúde mental dos foliões?
A ausência da festa pode impactar o emocional dos brasilienses que consideram a folia como um marco para o início do ano
atualizado
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Sem frevo, blocos e trios elétricos, o cancelamento do Carnaval este ano deixou milhares de foliões com saudade da festa. A ausência do festejo, pela primeira vez desde que a farra teve início na história do país, pode causar abalos no emocional dos carnavalescos, principalmente entre aqueles que apostam na válvula de escape para começar o ano e cultivam afeto pela tradição. A festa foi suspensa por conta da pandemia do novo coronavírus, que já vitimou mais de 230 mil brasileiros.
De acordo com a mestre em psicologia positiva Flora Victória, o cancelamento do evento significa que não haverá pausa em meio à labuta e às preocupações do dia a dia, cultura com a qual os brasileiros estão acostumados desde o século 17, quando a manifestação teria desembarcado no país.
“Não poder contar com essa válvula de escape, exatamente quando as tensões se intensificam devido à pandemia, pode aumentar os sentimentos depressivos, a ansiedade e a frustração. Mesmo quem não costuma participar do Carnaval pode ser afetado, porque seu cancelamento acentua a quebra de normalidade que estamos vivendo”, salienta.
Segundo a especialista, a abordagem puramente racional pode não ser suficiente. “É necessário, também, trabalhar aspectos emocionais. O conhecimento dos riscos não impede as pessoas de se sentirem deprimidas”, ressalva.
Um dos fundadores do bloco Galinho de Brasília, Romildo Carvalho alega que o vazio que o cancelamento das festas carnavalescas deixam nos corações dos foliões do Distrito Federal é imenso, mas não o bastante para colocar vidas em risco. Tanto ele como outras entidades culturais desencorajam a celebração no atual cenário.
“É uma incógnita muito grande, não existe nenhuma certeza em cima de absolutamente nada. Isso nos deixa em um processo de espera de olhos vendados, sem saber o que vai acontecer. E não seria racional fazer qualquer evento que implique na aglomeração de pessoas num momento como esse”, explica Carvalho.
Ele acrescenta que os amantes do frevo sentem ainda mais falta da festa. Nesta semana, no dia 9 de fevereiro, foi comemorado o dia nacional do ritmo em Pernambuco. “As pessoas que fazem o Carnaval, passistas, artistas, compositores, se sentem isolados, chocados, como que com um olhar perdido”, diz o folião.
Equilíbrio emocional
Para que os carnavalescos e amantes da festa não sejam consumidos pela saudade, Romildo incentiva que as pessoas se contentem com a forma digital de celebração, com lives de artistas e blocos, músicas e imagens de festas anteriores. Além disso, ressalta que sentir falta deve ser encarado como algo bom, já que, segundo ele, “só temos saudade daquilo que gostamos”.
Para ilustrar o sentimento, ele indica o frevo Saudade, de Nelson Ferreira e Aldemar Paiva. A letra diz: “Quem tem saudade não está sozinho, tem o carinho da recordação. Por isso, quando estou mais isolado, estou bem acompanhado com você no coração”.
A psicóloga Flora Victória acrescenta que é essencial a busca por alternativas seguras, para que o período não seja transformado em um vácuo emocional. “Faça algo que você goste e que lhe dê prazer. Aprenda alguma atividade. Comece um projeto, ou conclua aqueles que você largou pelo caminho. Volte-se para seus objetivos e busque tudo aquilo que renove suas energias, em vez de drená-las”, aconselha.
O bloco Divinas Tetas vai transmitir a gravação inédita do show do ano passado, na Rádio Cafuné, pelo aplicativo Zoom. A festa digital está programada para esta terça-feira (16/2). Outra opção é assistir as lives feitas por personalidades carnavalescas, que ocorrem entre os dias 13 a 17 deste mês.
Quem ama
Frequentadora de carnavais assídua, a auxiliar em educação Nathalia Emily Rodrigues, de 30 anos, faz parte do time folião que sente no peito a ausência da festa. Para ela é uma oportunidade de celebrar a vida na rua e com a companhia de desconhecidos que tem o mesmo objetivo.
O amor é tanto que, em 2020, ela preferiu acompanhar o bloco Navio Pirata junto com sua banda favorita, a Troça Elétrica da Nação Zumbi, em vez de realizar a festa de aniversário de 30 anos.
“Desde criança, nos anos 1990, eu aproveito e amo o feriado de Carnaval. Minha mãe sempre levou eu e meu irmão para viajar ou festas carnavalescas. Hoje em dia, uns dias curto com eles e outros com amigos”, relembra. “Esse momento é a cara da cultura do Brasil.”
Se não houvesse a Covid-19, ela certamente iria para os blocos de rua para “beber cerveja quente e encher o corpo de glitter”. Mas, sem a festa, a expectativa é diferente. Ela deve seguir trabalhando a distância e curtir uma programação mais caseira, com filmes e séries.
Atração pela folia
A publicitária Cecília Avelino, de 21 anos, sente a mesma atração pela folia. O hábito anual de sair para festejar começou enquanto ela ainda era criança e foi se desenvolvendo ao longo da vida.
“O carnaval é uma festa em que a gente simplesmente ignora os nossos problemas, abraça todo mundo, a diversidade. É um momento no qual todo mundo fica bem e pode ser quem realmente é. Começar o ano sem é muito estranho, porque é uma forma de recomeçar, renovar as energias para viver bem”, conta.
Assim como Nathalia, se não fosse pela Covid-19, ela também já estaria com a geladeira abastecida de cerveja e o corpo repleto de muito confete e purpurina. Este ano, ela pretendia ir dançar axé em Salvador, como fez em 2020. O plano foi adiado para 2022, quando acredita que haverá uma edição histórica da festa carnavalesca.
E agora?
A mudança de perspectiva em relação ao cancelamento da festa implica também na emblemática frase “o ano só começa depois do carnaval”. A psicóloga Flora Victória questiona sobre o porquê da festa pagã influenciar tanto no modo de vida dos brasileiros e incentiva a reorganização da mentalidade.
“Pense em tudo que você quer fazer e realizar, conecte-se com o seu propósito e comece a planejar e a agir agora. Talvez você se sinta desanimado. Talvez não saiba por onde começar. Mas, pense nisso”, diz.
Flora defende que as facilidades tecnológicas mostram ser possível se reinventar e aprender mais sem sair de casa. “Use essa vantagem a seu favor. Aumente seus recursos internos, busque inspiração, aprenda a se renovar e a se fortalecer. Isso não só vai dar um gás para continuar vivendo o ano, mas para continuar vivendo a vida”, completa.
Para Adolfo Neto, um dos idealizadores do bloco Divinas Tetas, o posicionamento do governo do DF sobre o cancelamento poderia ter sido menos rígido. Ele pondera que deveria ter havido um debate entre as autoridades governamentais e os agentes culturais da região, para a descoberta de como fazer as atividades de forma segura, sem gente na rua se aglomerando.
“As atividades on-line são uma realidade, poderíamos estar fazendo isso. Ações para ajudar toda essa cadeia produtiva, para os trabalhadores diretos e indiretos, para todo mundo que trabalha no Carnaval. E mais do que isso, para manter vivo essa manifestação cultural que é a maior do planeta. Um grande tiro do pé”, opina.
Durante os dias que seriam Carnaval, festas, eventos e blocos de rua estão proibidos na capital federal, conforme um decreto assinado pelo governador Ibaneis Rocha. A norma permite que apenas bares e restaurantes funcionem, desde que cumpram regras contra a contaminação do novo coronavírus. O ponto facultativo se mantém na terça-feira (16/2).
O lado ruim do cancelamento
Além de doer no coração, o cancelamento do carnaval dói no bolso, sobretudo no de quem depende financeiramente da festa. De acordo com o presidente da Liga dos Blocos Tradicionais de Brasília, Paulo Henrique, pelo menos 2,5 mil ambulantes costumam trabalhar no período carnavalesco.
“Muitos milhões de reais vão deixar de circular por aí, nos bares, supermercados, cervejarias, lojas de fantasia. Isso é péssimo para quem precisa desse recurso, vai deixar a cidade economicamente com um buraco que não sei se o resto do ano será capaz de tapar”, lamenta o representante.
O cancelamento da festa atinge toda uma cadeia produtiva. Desde o Carnaval passado sem trabalhar, a equipe do Divinas Tetas está lidando com os abalos econômicos de forma individual, em que cada um faz o próprio “corre” e maneja projetos paralelos. Recentemente, o bloco foi contemplado com o prêmio Aldir Blanc – reconhecimento que, segundo Adolfo, foi uma ajuda para a situação econômica da equipe, mas não suficiente para sanar o prejuízo de 2020, um ano praticamente sem renda.
O coordenador geral do bloco CarnaMuseu, Márcio Apolinário, argumenta que há um descuido com os trabalhadores culturais, que estão à margem da economia devido à Covid-19. Ele defende a criação de medidas auxiliadoras para o setor, que funciona durante o ano inteiro, não apenas em fevereiro. “Somos trabalhadores como os demais, mas insistem em não nos enxergar como um setor produtivo e humano”, critica Márcio.
“Enquanto a gente não puder ir para a rua de uma forma segura, a gente não vai. Cada um está lidando da forma como pode. Tenho certeza que meus colegas, carnavalescos e carnavalescas, sabem que, no ano que vem, com certeza o Carnaval vai ser inesquecível. O maior de todos os tempos”, sonha Adolfo.
A expectativa é que em 2022 a festa volte com força total, em Brasília e no restante do país. Aqui, na capital, a previsão da Liga é que o Carnaval tenha o slogan dois em um: um grito de esperança para quem ama se aglomerar na festividade, mas que precisará esperar um pouco mais para sair da garganta.