Agosto Lilás: como a escrita ajuda mulheres vítimas de violência
No mês dedicado à prevenção da violência contra a mulher, escritora desenvolve trabalho que ajuda na superação de traumas
atualizado
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Independentemente do mês ou da campanha, a situação se repete: os casos de violência contra a mulher ainda fazem parte do contexto da vida feminina no país. No primeiro semestre de 2022, a central de atendimento do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos registrou 31.398 denúncias contra crimes de gênero.
Ainda que acompanhar os números desses casos seja de suma importância para desenvolver ferramentas e formas de coagir esses crimes, o amparo à vítima tem falhado. Na maioria das vezes, a mulher que enfrenta esse contexto de violência tem sequelas psicológicas profundas deixadas pelo trauma.
“Na maioria das vezes, essas vítimas apresentam muita dificuldade para falar e expressar seus sentimentos depois dos episódios de abuso. Sair dessa condição de ‘bloqueio’ emocional, em que o ato de falar ainda é muito doloroso, torna a situação difícil, até mesmo para o processo terapêutico dessas vítimas”, ressalta psicóloga Patrícia Zerlottini dos Reis Barros.
Anos de dor
Nos casos em que não há a rede de apoio necessária, essa mulher pode internalizar o trauma e só lidar com ele semanas, meses ou anos depois do ocorrido. “Foi um processo longo para eu perceber que de fato existia uma situação violenta”, relata Mariana Celestina*.
“Existe uma dificuldade, de maneira geral e por razões totalmente compreensivas, em dizer não a uma situação de violência, seja ela física, sexual ou psicológica. […] A intimidade, a saúde emocional e a vida pessoal de Amora não eram consideradas por ele em nenhum momento. Os limites dela não eram respeitados, assim como o seu querer e as suas preferências. Narciso simplesmente não enxergava que as mulheres, mesmo sentindo algum tipo de ‘desejo’ aos estímulos do toque e das carícias, às vezes, não tinham interesse em algo.”
No trecho acima, é possível ler o relato feito por Mariana*, por meio de seu pseudônimo, Amora. Aos 33 anos, a escrita foi o método terapêutico que ela encontrou para lidar a violência sexual e psicológica que sofreu em diferentes fases da vida: aos 12 anos e aos 28 anos.
“Amora já consegue compreender que sua dificuldade para dizer não está totalmente ligada à questão do abuso que sofreu na infância. O conflito era grande, ela estava sentindo pela primeira vez aquele desejo, mas a situação a deixava sem condições de reagir a isso. Ela sentiu muita dificuldade para tomar uma decisão e reagir diante da situação de submissão e inferioridade.”
Escrita terapêutica
A técnica, bem se sabe, traz benefícios ao corpo e a mente. Grandes poetas e escritores na história já falaram sobre isso quando estavam apaixonados, com raiva, iludidos ou até mesmo magoados. O poder desse método, porém, pode ir além disso.
“A escrita terapêutica tem muito sucesso, principalmente, nos casos de abusos sexuais e de violência doméstica, pois consiste numa escrita livre, sem preocupação com a estrutura do texto. O objetivo é apenas escrever o que vier na mente, sentimentos, lembranças…”, salienta Zerlottini.
“Escrevia sem me preocupar com julgamentos ou críticas de outras pessoas e isso se tornou uma poderosa ferramenta de cura das minhas dores internas”, conta outra vítima de violência, que não quis ser identificada.
De acordo com a psicóloga, a técnica auxilia essas mulheres a expressar seus sentimentos e pode facilitar o início do processo terapêutico. “É preciso ter consciência que essa escrita não vai ser a cura, mas o caminho para conseguir guiar essas vítimas até a melhor forma de fazê-la superar esse trauma”, ressalta a autora e mentora de escrita feminina Lella Malta.
A dor e a escrita
Cientista social, Lella utiliza da escrita há muitos anos para lidar com os próprios sentimentos e com diversas questões do seu dia a dia, mas foi apenas na pandemia de Covid-19 que ela percebeu que também poderia ajudar outras pessoas.
“Me fazia muito bem e, na pandemia, as pessoas procuraram, principalmente, formas de lidar com o luto. E a escrita foi uma delas”, conta. “Muitas delas estavam passando por aquilo pela primeira vez na vida e, em alguns casos, com mais de uma pessoa ao mesmo tempo”, relata a escritora, que atende apenas mulheres que buscam por essa terapia alternativa.
“Antes da escrita, eu não conseguia falar abertamente com as pessoas sobre a violência que sofri quando criança, somente com poucas amigas — aquelas de maior confiança. Eu me sentia esmagada pelo muro do silêncio referente à violência sofrida na infância e por uma quarta-montanha que se refere à opressão ao sexo feminino”, desabafa Mariana*.
Mariana é uma das mulheres que faz aulas com Lella para lidar com abusos sofridos ao longo da vida. “Escrever foi a melhor forma que consegui para me expressar” conta ela que, em poucos meses, vai lançar um livro contando sobre seus traumas.
Lella explica que esse pode ser um dos recursos acatados pelas mulheres que atende. “Há quem gosta de escrever e não ler mais, jogar aquilo fora. Há quem se encontra na escrita e quer transformar aquilo em algo maior, querem mostrar para outras mulheres que é possível superar aquele trauma”, salienta.
“Através dela [a escrita terapêutica], consegui expressar o que sentia, pensava e desejava referente a passagens da minha vida que não conseguia conversar com ninguém. Me sentia segura para dar voz aos meus pensamentos e emoções, e ressignificar o que não mais fazia sentido na minha vida”, relata uma mulher vítima de abuso psicológico por seu antigo parceiro, que optou por não ser identificada.
Ao Metrópoles, a Lella Malta conta como funciona esse método e como ele pode ajudar mulheres vítimas de violência. Assista:
Como fazer?
A vontade de fazer a escrita terapêutica para lidar com os próprios sentimentos pode partir de qualquer pessoa. Para os iniciantes, a especialista lançou o livro 30 Dias de Escrita Terapêutica com o passo a passo para iniciar a prática.
30 Dias de Escrita Terapêutica
*Nome fictício a pedido da entrevistada