A vida depois de… usar a escrita para sobreviver na cadeia
Mauro Moncks passou 2190 dias no Complexo Penitenciário da Papuda, em uma cela de três metros por um e vinte, junto com 20 homens. Com a poesia, transformada em livros, ele sobreviveu a tudo e encontrou uma nova vida
atualizado
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O encontro com Mauro Moncks, 55 anos, foi marcado em um dos seus locais de trabalho: o Beirute da Asa Sul. Desde outubro do ano passado, sua realidade consiste em trabalhar de motoboy durante o dia e vender livros de bar em bar à noite.
Até aí, nada muito diferente das centenas de pessoas que, como ele, trabalham durante o dia e vendem flores, DVDs, bombons em comércios noite adentro.O diferencial está no fato dele ser o autor dos livros que carrega em uma bolsa lateral. Os exemplares contam, em forma de poesia, um pouco do que viveu – ou deixou de viver – durante os oito anos em que esteve preso no Complexo Penitenciário da Papuda.
“Cem dias de reclusão/ sem palavras para explicar/ A angústia que eu sinto, irmão/ Como é difícil aguardar/ De novo o renascimento/ Que se chama alvará/ Esperado a qualquer momento/ Eu sei que ele vai chegar/ E como um recém-nascido/ Do cárcere eu vou sair/ Será cortado o meu umbigo/ Em vez de chorar, vou sorrir”.
O trecho acima faz parte de um dos 152 poemas escritos por Monck e publicados na obra “Eu te amo, Liberdade“. Os textos foram fluindo e as palavras conseguiram salvar e libertar a mente, enquanto o corpo continuava atrás das grades.
Nascido em Pedro Osório (RS), Mauro casou-se quatro vezes. Com a última esposa, Marilene, continua junto até hoje. O primeiro casamento foi aos 16 anos e desse relacionamento nasceu a filha mais velha, Flor da Paz, que morreu apenas três anos depois. No total, ele tem quatro filhos.
Moncks traficava maconha em grande quantidade. Fazia a rota Brasil/Paraguai, quando foi preso pela Polícia Federal em 2006. Foram seis anos no regime fechado e dois no semiaberto. Grande parte das lembranças são negativas, mas por um aprendizado ele agradece:
Antes de entrar na cadeia eu tinha a mania horrível de reclamar muito. Foram 45 anos me queixando de tudo. Do trânsito, mulher, filhos, falta de dinheiro. Ao cair na cadeia eu falei: ‘bicho, do que eu estava reclamando? Eu era feliz, vivia no paraíso e não sabia’. Porque o sistema carcerário brasileiro é, literalmente, a instituição mais falida que existe. É um depósito de homens.
Mauro Moncks
A cela onde ficou por 2.190 dias mede três metros por um e vinte, abrigava 20 homens, seis camas e um banheiro. Era nesse cenário que passava 22 horas por dia, as outras duas eram de banho de sol. “Muitos presos não representam perigo ao entrarem no presídio, mas sim ao sair. Porque o pior da cadeia não é a prisão física, é a mental”, conta Mauro.
Dentro do presídio existem os “corres” (forma que os presidiários encontram para ganhar dinheiro enquanto estão presos). Alguns atuam como agiotas, outros vendem drogas, pedaços de espaço no banho de sol e “terrenos” para receber visitas.
“Lá dentro a droga vale ouro, vale muito dinheiro. Então, as mulheres arriscam suas liberdades para garantir dinheiro para o marido. Esse para mim é o ‘corre’ mais pesado. Eu jamais faria esse tipo de coisa, não arriscaria a liberdade da minha mulher e não queria aumentar meu tempo”, explica.
Foi então que o escritor começou a fazer faxina nas celas, lavar roupa dos outros presos, tudo por dinheiro. Até que um dia, um dos presidiários o procurou para contar que estava com 40 anos, sendo que 20 saindo e voltando para o presídio, e a mulher havia cansado, resolveu largá-lo. “Ele me disse que estava querendo reconquistá-la e me passaria o perfil dela para que eu escrevesse uma carta. Alguns dias depois ele me procurou dizendo que o plano tinha funcionado e a mulher voltou para ele graças à minha carta”, conta rindo.
O fato o deixou famoso entre os companheiros de cárcere e logo Mauro estava cobrando um real por carta para reconciliar os presos com suas esposas. Nos dias bons, chegava a escrever 20 e conseguia entregar para a esposa de R$600 a R$700 por mês. A nova função fez com que ele parasse de fazer as outras atividades de limpeza.
“Minha esposa era dona de casa, estava sustentando nossos quatros filhos, não podia deixar ela na mão. As pessoas acham que todos os presos recebem auxílio reclusão, mas só as pessoas que estão contribuindo com o INSS até o dia da prisão têm esse direito para os dependentes. Eu não estava, mas descobri depois que o meu pai estava pagando para mim lá do Rio Grande do Sul”, conta.
Nasce o “semeador de palavras”
Batizado na igreja católica aos 11 anos, Mauro não tinha religião. Ele não acreditava que a salvação de um ser humano estava dentro de uma igreja e achava que a Bíblia era o livro dos ignorantes.
No presídio, sempre ao final do dia, os evangélicos realizavam um culto, onde os irmãos de cada cela liam um trecho da Bíblia. Ninguém se via, mas a oração era em conjunto.
“Eu comecei a escutar aquelas palavras: ‘E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’, ‘Tempo de amar e tempo de odiar; tempo de guerra e tempo de paz’, e a passagem de Coríntios 13 que fala sobre o amor, e comecei a me inspirar e escrever poemas através dos meus sofrimentos. Eu precisava descarregar em alguma coisa”, diz Mauro.
O escritor deixa claro que sua publicação não é religiosa, apenas inspirada na Bíblia, que realmente é um livro poético. Apesar disso, garante que Deus é seu parceiro e pegava em sua mão em todos os momentos que escrevia.
As palavras foram fluindo e Mauro reuniu um bom material. Foi quando começou a ter uma preocupação: como tiraria todos esses textos da penitenciária? Dentro da cadeia acontecem as invasões. Uma bomba de efeito moral é jogada, a polícia entra em todas as celas e procura armas, drogas, espalham e rasgam tudo o que encontram, e os presos são colocados seminus no pátio para serem revistados.
Com medo de perder seus pensamentos, enviava as folhas pela esposa nos dias de visita. Os visitantes são revistados para entrar, mas não para sair (raramente acontece). Se ela fosse apanhada com os escritos, só quem sofreria o castigo seria Mauro. Aos poucos, ela tirou da cadeia todo o material escrito.
Querendo se ver livre o mais rápido possível do presídio, Mauro começou a estudar e depois passou a fazer faxina para diminuir a pena. Conseguiu diminuir oito meses do tempo total.
Já no regime semiaberto, contou com o apoio da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap/DF). Foi encaminhado para a Secretaria de Cultura, onde trabalhou no projeto Mala do Livro. Lá recebeu curso e o prêmio de melhor de contador de histórias. Durante dois anos abastecia os pontos de ônibus e estações do metrô com livros, e lia para crianças em creches.
Em 2013, estava contando histórias infantis na Bienal do Livro e participou de uma matéria para uma emissora local. O dono da editora Thesaurus, Tagore Alegria, assistiu e entrou em contato. “Para lançar um livro, com diagramação boa, bem feito, como o que eu consegui publicar, é muito difícil, eu jamais faria por conta própria”, fala o autor.
Ficou combinado que Mauro trabalharia como motoboy, fazendo entregas para a editora durante o dia, e em confiança conseguiria uma tiragem de mil obras. O pagamento sairia da venda dos livros, então o autor teria que se virar para conseguir aumentar as vendas. O lançamento foi realizado no restaurante Carpe Diem, mas não deu muita gente e só foram compradas 23 unidades.
Em outubro, ele começou a peregrinação pelos bares de Brasília oferecendo seu trabalho autoral. Já está na segunda edição e conseguiu vender mais de 1.650 exemplares.
“Meu livro é uma incursão poética dentro do sistema prisional. Estou duplamente realizado, fiz bem para mim e hoje estou ajudando muitas pessoas. Outro dia fui chamado de ‘semeador de palavras’, adorei esse nome. Vou escrever uma autobiografia e vai ter esse nome”, diz sorrindo.
O material escrito por Mauro foi dividido em quatro livros. O segundo, “De férias no inferno”, deve sair ainda este ano ou no começo do ano que vem, e reúne crônicas, contos e personagens da cadeia. Os outros dois, ainda sem título, seguem a linha do “Eu te amo, Liberdade” e são poesias.