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A vida depois de… Sobreviver a uma tentativa de suicídio

Aos 23 anos, Isabel Montón tomou um vidro inteiro de calmantes. Não queria acordar nunca mais. Hoje, usa a força e o aprendizado para salvar outras vidas como voluntária do Centro de Valorização da Vida

atualizado

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Brasília (DF), 11/05/2016 – A vida depois de… sobreviver a uma tentativa de suicídio e ajudar a salvar outras vidas. Foto: Leonardo Arruda/Metrópoles
1 de 1 Brasília (DF), 11/05/2016 – A vida depois de… sobreviver a uma tentativa de suicídio e ajudar a salvar outras vidas. Foto: Leonardo Arruda/Metrópoles - Foto: null

Faz 48 anos, mas Isabel Montón lembra-se bem. Não há tempo que a faça esquecer o dia em que, à beira do abismo emocional, sem ter para onde olhar, sonhar ou fugir, tentou colocar fim à própria vida. E o dia seguinte, o da sobrevivência, não é mágico. Não veio acompanhado de grandes descobertas, lágrimas ou uma vontade insuportável de viver. Nem de um despertar, um “o que que eu fui fazer?”. Não para ela.

Isabel queria dormir para sempre. Dormiu três dias. Acordou em um hospital psiquiátrico, dopada, sentindo os efeitos dos mais de 50 comprimidos calmantes que havia tomado. Faltava pouco para ela completar 24 anos. Ao encontrar o vidro vazio no apartamento onde Isabel vivia, a irmã correu com ela para o hospital. Lá, acordou anestesiada, uma sensação que a acompanhou algum tempo ainda depois daquele dia.

Era um vazio. Nada. Eu não tinha sentimento algum.

Isabel Montón
Leonardo Arruda/ Metrópoles
“Era um vazio”, diz, sobre quando acordou, em um hospital psiquiátrico


Isabel teve uma infância turbulenta no Rio de Janeiro. Começou a estudar e trabalhar cedo. Em casa, se sentia rejeitada pela mãe, que a culpava pela separação do marido. Diz que tinha sonhos premonitórios, via coisas. A mãe achava que a menina era meio “bruxa”. “Pura ignorância. Ela não sabia como lidar com essas coisas. Tinha medo, acho”, acredita. Ela tinha 3 anos quando o pai saiu de casa. Desde então, nunca mais o viu.

Cheia de sonhos e planos, Isabel tentou viver uma vida normal na capital fluminense. Com 20 e poucos, se apaixonou perdidamente. “Tinha fantasias de garota, queria casar”, conta. Foi viver sua fantasia dividindo o mesmo teto com o amado. Um dia, durante uma briga, ele anunciou que a deixaria. Para quem havia varrido rejeições para debaixo do tapete muitas vezes durante a vida, o baque foi grande demais. Sem fazer alarde, decidiu que essa vida já não era mais para ela. “Foi decepção amorosa”, diz pouco, ainda assim dizendo muito.

O namorado a acompanhou no hospital e a briga virou fumaça. Pouco depois, Isabel engravidou dele e a vida ganhou outro sentido. Ou, pelo menos, novas prioridades. As preocupações com a gravidez lhe salvaram de se afundar nas próprias tristezas. Agora, tratava-se da vida de outra pessoa. Nos anos 1970, com um bebê de três meses no colo, veio para Brasília com o marido, engenheiro da Telebrasília na época. A vida lhe dava mais uma chance de recomeço.

Hora de se despedir
Isabel passou 30 anos ao lado do homem que lhe causou aquela decepção amorosa e teve três filhos com ele. Nessas três décadas, oscilou entre altos e baixos. Lutou para se curar da tristeza.  Recém-chegada a Brasília e ainda engasgada com aquela tentativa de suicídio, procurou um serviço de atendimento psicológico via telefone. Precisava desabafar. Queria dividir sua dor com alguém. “Só que eu queria um serviço que fosse anônimo, que eu pudesse falar sem me identificar. E a pessoa queria saber tudo da minha vida.”

Passou a devorar livros e temas diversos. Se matriculou em “tudo o que era cursinho”. Tomou antidepressivos, fez yôga, academia e dança. Largou os dois primeiros, se apegou aos últimos – principalmente quando o forró é o ritmo que embala o salão. “A dança é o melhor medicamento que existe”, tem certeza. Criou os três filhos. Um dia, furiosa com o marido, quis jogar o carro para fora da pista. Lembrou-se das crianças no banco de trás. Que alívio.

 

Leonardo Arruda/Metrópoles

 

Devagar, a tristeza foi dando lugar talvez não à alegria, mas à vida, simplesmente. Um dia, num programa de televisão, viu uma moça contar que havia tentado acabar com a própria vida diversas vezes até se tornar voluntária do Centro de Valorização da Vida. Trata-se de uma associação sem fins lucrativos que, desde 1962, faz atendimento voluntário e gratuito a pessoas que precisam de apoio emocional via telefone, muitas vezes à beira de, literalmente, se jogar de uma ponte. O atendimento é sigiloso.

“Essa é a minha história”, pensou Isabel, ouvindo o depoimento da moça pela TV. Se lembrou de quando quis desabafar pelo telefone, mas não encontrou nada que lhe ajudasse no acolhimento do anonimato. Descobriu que o CVV tinha uma filial na capital e se matriculou. Levou com ela uma das filhas. Juntas, fizeram o curso de formação de voluntários, uma jornada de 10 semanas pela psicologia humana e uma baita lição de como ouvir ao outro. Parece um exercício simples, mas quase ninguém pratica no dia a dia.

Em 2016, Isabel completa 28 anos como voluntária do CVV. É a segunda mais antiga do quadro de 40 pessoas que se revezam em turnos de quatro horas, dedicadas a amparar quem precisa de um ombro. A sede da associação hoje fica num prédio comercial na Asa Norte. Os atendimentos via telefone – o CVV opera no número 141, 24 horas por dia – são feitos em uma salinha pequena, com não mais que um sofá e um telefone. É o suficiente para salvar vidas.

A primeira coisa que eu faço é convidar a pessoa a conversar. O que a levou até ali? Costumo comparar as pessoas a uma panela de pressão. Uma vez que você puxa a válvula e tira a pressão, acabou. Ela não corre mais o risco de explodir. Desabafar funciona do mesmo jeito.

Isabel Montón

Leonardo Arruda/Metrópoles

Segundo Isabel, atendimentos a suicidas não são assim tão frequentes no CVV. Há quem dê plantões há anos sem nunca ter atendido um único caso. Ironia ou desenho do destino, ela encontrou alguns pelo caminho. “Costumo dizer que a gente atrai para si aquilo de que estamos precisando. Como a questão do suicídio ainda não era bem resolvida dentro de mim, eu acabei lidando mais do que a média com esses casos”, comenta.

Certa vez, atendeu um jovem de 20 e poucos anos que havia ficado com metade do corpo paralisado depois de um acidente de carro. O único tratamento possível era nos EUA e sua família não tinha condições de bancar. Ele havia acabado de entrar na faculdade. Rindo, contava sobre como era ruim assistir aos colegas saindo para festas, se entregando a suas primeiras paixões, sentado numa cadeira de rodas.

“Eu conversei com ele e sugeri que procurasse uma pessoa querida. Chorando, ele me agradeceu, e contou que estava decidido de que eu seria a última pessoa a quem ele contaria a sua história. Ele tinha uma arma ao seu lado, mas daria uma chance ao meu conselho. Foi a única vez que um atendimento me desestabilizou”, conta Isabel.

Leonardo Arruda/Metrópoles

 

Atendimento após atendimento, Isabel ficou mais forte. Se curou curando outras pessoas. Mas ela prefere dar outro nome ao processo. “É um crescimento. Uma evolução. O CVV me transformou muito”.

Há oito anos, Isabel rompeu com o primeiro marido. Era hora de deixar o passado no passado. “Não foi muito fácil, não”, ela conta. A vida tratou de lhe ser gentil: hoje, ela vive nova fantasia de menina, desa vez em águas mais calmas. Há sete anos, disse “sim” de novo.

O novo marido sabe tudo sobre sua história. Se ela tivesse conseguido o que queria naquele dia, aos 23 anos, jamais o teria encontrado. Ele agradece, ela também. “Hoje isso é página virada. Passou”, sorri.

O CVV:
O Centro de Valorização da Vida presta apoio emocional gratuitamente 24 horas por dia, de forma anônima e sigilosa. Os atendimentos podem ser feitos por telefone, e-mail, Skype, chat, ou pessoalmente. Em Brasília, o posto de atendimento funciona no Setor de Rádio e TV Norte Quadra 702, Edifício Brasília Rádio Center, sobreloja 5. O atendimento é feito pelo 141.

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