metropoles.com

A vida depois de… sobreviver a um acidente de avião

Em 1982, um avião da Vasp partiu ao meio e caiu no Aeroporto Internacional de Brasília. O professor universitário João Alfredo era um dos 118 ocupantes do Boeing

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Foto: Bruno Pimentel/ Metrópoles
joaoalfredo
1 de 1 joaoalfredo - Foto: Foto: Bruno Pimentel/ Metrópoles

“Achávamos que o avião ia arremeter, dar uma volta para aterrissar de novo, mas ele abaixou de uma vez e violentamente caiu. Desabou como se fosse um elevador solto da corda e foi uma gritaria generalizada. Com a pancada, as máscaras de oxigênio caíram e o teto se abriu mostrando toda a fiação da aeronave”

 Assim começa o relato de um homem que relembra com detalhes a experiência vivida no dia 24 de maio de 1982. Na ocasião, João Alfredo de Mendonça Uchôa, 58 anos, era um dos 112 passageiros a bordo do Boeing 737-2A1 (PP-SMY), voo 234 da Vasp.

O avião saiu de Porto Alegre, fez conexão em Foz do Iguaçu, escala em São Paulo e só depois chegou em Brasília. Tudo transcorria dentro da normalidade quando, por volta de 23h30, em meio a forte chuva, ao aterrissar na capital federal, o avião partiu ao meio, matando dois passageiros, o advogado gaúcho Edgar Degrazia, de 43 anos, e o engenheiro catarinenses Luis Celso Neves Andrade, 33 anos, e deixando diversos feridos.

Foto: Bruno Pimentel/ Metrópoles
João Alfredo Uchoa sempre gostou de viajar. Mas, aos 24 anos passou por uma experiência que marcou sua vida

 

Entrando na aeronave, João Alfredo, então com 24 anos, percebeu que o voo estava bem cheio. Caminhou pouco até chegar ao seu assento 5D, no corredor. Sentado ao seu lado estava o já falecido deputado Prisco Viana (PDS-BA), com quem conversou muito durante a viagem. Por volta das 22h, o avião saiu de São Paulo, onde chovia bastante. Por isso, a turbulência foi inevitável. O fato atrasou um pouco o serviço de bordo.

Naquela época, as companhias ainda serviam três tipos de refeições quentes completas, os talheres eram de metal, pratos e xícaras eram de louça e os passageiros contavam com diversas opções de bebida, como uísque, vinho e cerveja. O carrinho passava pelo menos duas vezes pelos corredores e era válido repetir. “Depois do jantar, quase 23h30, os passageiros já estavam em repouso, a turbulência havia melhorado um pouco e nós nos aproximávamos de Brasília”, continua.

Arquivo Pessoal
Passagem guardada até hoje

 

João sempre adorou viajar de avião, porque achava o transporte “hiper-seguro”. Ele conta que o piloto já havia alertado sobre possíveis turbulências e por isso não pensou duas vezes em manter os cintos afivelados — costume não comum na época, mesmo com as instabilidades.

Chegando em Brasília o avião balançava muito. Chovia demais, a aeronave parecia ser levada, não sei se por efeito da chuva ou da ventania. Quando ele se aproximou do solo, bateu fortemente a roda no chão e pegou impulso para subir novamente. Achávamos que ele iria arremeter, dar uma volta para aterrissar de novo, mas ele abaixou de uma vez e violentamente caiu. Desabou como se fosse um elevador solto da corda e foi uma gritaria generalizada

João Alfredo Uchôa

Com a pancada, as máscaras de oxigênio caíram e o teto se abriu mostrando toda a fiação da aeronave. Água da chuva e querosene caíram nos passageiros. “Eu estava com uma calça jeans e uma jaqueta de couro e minha roupa ficou impregnada com um forte cheiro de água e combustível. O deputado, sentado ao meu lado, pegou na minha mão e começou a rezar o Pai Nosso e me chamou para fazer o mesmo. Ele dizia que tinha muitas coisas para fazer, tinha netos. Eu falei que eu também não podia morrer agora, pois tinha uma vida pela frente”, lembra.

Foto: Arquivo Pessoal
João no dia do acidente, antes de sair da casa em que estava hospedado, em Porto Alegre

Após a batida, a parte da frente do boeing rodou na pista umas três vezes sem conseguir parar. Enquanto isso, os passageiros conseguiam visualizar o aeroporto e um posto de gasolina, que estava longe, mas a possibilidade de acertar o posto gerou medo.

“A parte da frente, onde eu estava, entrou em uma vala do lado da pista e só assim o avião parou. Todo mundo ficou inclinado e o Boeing estava de lado, com uma asa no chão e a outra levantada. Até então não tínhamos percebido que o avião estava partido ao meio, pois estávamos sentados e presos nas cadeiras”, relata o professor.

As duas pessoas que morreram, e as outras que ficaram em estado grave, estavam na fileira de número 12, exatamente onde o Boeing se partiu.

Quando a parte frontal do avião parou de rodar, o pânico se alastrou. Os passageiros começaram a se movimentar e a aeromoça pedia calma. Estavam todos desesperados sem saber o que tinha realmente acontecido. “A comissária de bordo abriu a porta e começou o procedimento de segurança para evacuar a parte em que estávamos. Mas em determinado momento ela falou: ‘Ainda não temos ameaça de fogo’ e quando ouvimos a palavra ‘fogo’ o pânico aumentou”, conta.

Em seguida, a turbina esquerda estava em chamas — com o rodopiar do Boeing ela tinha se soltado da aeronave. Se ela tivesse presa à asa seria pouco provável ter sobreviventes, pois o avião teria incinerado.

“Meu Deus do céu, o avião estava lotado, e onde estava o povo? Onde estava a outra metade? Olhei para trás, vi a pista, turbina e muito barro no chão. Não parava de chover e começamos a sair em fila pelo escape slide (um tobogã inflável para os passageiros escorregarem). Muita gente chorava, com crise de pânico, não teve ninguém desmaiado, mas as pessoas estavam literalmente em estado de choque”, relembra João Alfredo.

Para piorar, o escape slide não inflou por inteiro e como era muito alto, as pessoas tiveram medo de pular. Uma senhora indiana se recusou a saltar e, por isso, foi empurrada para que os outros passageiros pudessem sair. O medo de ocorrer um incêndio ou uma explosão era grande, pois do lugar onde o avião partiu ao meio continuava saindo uma grande quantidade de combustível .

As pessoas foram correndo, no meio da pista em direção ao terminal do aeroporto. Só então os passageiros da primeira metade avistaram a outra parte da aeronave a alguns metros de distância. A calda estava apontada para baixo e os passageiros pulavam da parte de cima, pois não tinham outro jeito de sair.

“Dei a volta no avião, queria minha mala de qualquer jeito, pois estava com várias encomendas. Não sei se pelo choque da situação, cismei com a mala. Quando cheguei no bagageiro do Boeing vi uma pessoa deitada, ainda presa na cadeira. Estendi a minha mão para ela, tentei acordá-la, achava que estava apenas desmaiada, mas estava morta. Nessa hora os bombeiros chegaram ao local e me pediram para sair”, relembra.

Foto: Reprodução/ Jornal Brasil
Notícia do Jornal do Brasil, do dia 26 de maio de 1982

 

A vida após o trauma
João Alfredo seguiu então para o terminal, onde tomou consciência da gravidade da situação ao encontrar os passageiros e outras pessoas que estavam no local se ajudando. “As pessoas ficam muito solidárias nessa hora. Vi uma ex-miss Brasília, a tenista brasileira Claudia Chabalgoity, muita gente sem camisa, com marcas de sangue, cortes, as pessoas caíram no choro. Logo a imprensa chegou”.

Seu irmão, Carlos Olímpio Uchôa, estava no local para buscá-lo e viu tudo. Depois de esperar Alfredo conversar com a defesa civil, bombeiros e até dar uma entrevista, Carlos o levou para casa quase duas horas da manhã. Uma outra irmã que não morava em Brasília, estava assistindo TV e viu o irmão falando coisas sem nexo ao ser perguntado sobre a segurança do aeroporto.

“Nesse momento, a minha ficha caiu. Um piloto me disse que eu entrei em pânico e, por isso, só falava da minha mala. Era congelamento do medo. Acontece com pessoas que passam por grandes traumas”, fala Alfredo.

Foto: Arquivo Pessoal
João Alfredo aproveitando seu último dia de viagem em Foz do Iguaçu.

 

Uma das coisas que chamou a atenção do professor foi a demora dos bombeiros, a ausência de atendimento médico e de funcionários da companhia. Apenas os seis comissários do voo se importaram com os passageiros. O socorro demorou para chegar, muitas pessoas entretanto já estavam em suas casas.

No dia seguinte, ele foi ao aeroporto e a empresa já tinha tampado o nome Vasp do corpo do avião. “A preocupação deles era a imagem que ficaria para o próximo passageiro, não com quem passou por tudo aquilo, não com as horas extras que os pilotos eram obrigados a cumprir, não com a segurança de voo, mas sim em vender mais passagens”, desabafa.

Arquivo Pessoal
Cartão de embarque, marcando o assento 5D

Mesmo assim, Uchôa não processou a companhia. Pediu apenas o valor de uma máquina fotográfica que tinha acabado de adquirir e foi reembolsado. Na época, a Vasp afirmou não ter havido falha humana no acidente, atribuindo-o ao excesso de água na pista e a fortes ventos laterais.

O professor nunca fez tratamento psicológico, apesar de ter ficado 20 dias sem conseguir dormir. Acordava no meio da noite, mas não tomou nenhuma medicação para ajudar. Sempre sonhava com voos e acidentes aéreos.

Alguns anos depois encontrou colegas que também sobreviveram ao mesmo acidente. Mas nunca mais encontrou essas pessoas de novo. Viu algumas coisas na internet, inclusive ficou sabendo da morte de alguns.

Um acidente aéreo deixa o trauma psicológico por vários anos. É muito difícil esquecer. Marcou e mudou muito a minha vida. Quis viver mais o momento atual, não fazer muitos planos. Viver o dia de hoje, o passado é história e o futuro a Deus pertence.

Uchôa

Na época, João Alfredo trabalhava no Banco do Brasil, ainda não tinha pensado muito sobre casamento. Dois meses depois do acidente, conheceu a atual esposa, Cláudia Uchôa, com quem está há 30 anos e teve três filhos: Natália, 25 anos, Gustavo, 20, e Caio, 17. A primeira viagem depois do trauma foi inclusive a viagem de lua de mel.

Em 1985, o casal foi para Fortaleza, Maceió e Natal. Ao decolar o bancário não sentiu nada, apenas as mãos suadas. O pânico veio na volta a Brasília. “Era dia e tomei calmante, mas fiquei muito inquieto. Não queria nem ver a aterrissagem. Não voamos de Vasp. Apesar da minha vontade, não consegui. Até hoje, sempre que chego a Brasília a imagem do acidente me vem forte na mente”. relata.

Depois da viagem de lua de mel, João Alfredo voou muito a trabalho, principalmente pela Vasp, que emitia passagens para órgãos do governo federal. Hoje em dia, ele ainda adora voar e não deixa de conhecer outros cantos do mundo.

Foto: Bruno Pimentel/ Metrópoles

A única interferência severa que o trauma provocou na vida do servidor aposentado foi o sonho de ser piloto comercial. “Maio de 82 foi um ano de muitos acidentes aéreos. Só da Vasp foram três, incluindo o de Fortaleza que não deixou sobreviventes. Eu fiquei com aquela imagem de fase negra”, conta.

Eu acho que na vida a gente tem alguns momentos que são boas oportunidades para dar uma virada e tomar um rumo. E nesses momentos trágicos você ganha forças e muda sua história. Esse acidente me trouxe um novo repensar sobre a minha vida. 

João Alfredo de Mendonça Uchôa

Quais assuntos você deseja receber?

Ícone de sino para notificações

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

Ícone de ajustes do navegador

Mais opções no Google Chrome

2.

Ícone de configurações

Configurações

3.

Configurações do site

4.

Ícone de sino para notificações

Notificações

5.

Ícone de alternância ligado para notificações

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comVida & Estilo

Você quer ficar por dentro das notícias de vida & estilo e receber notificações em tempo real?