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A vida depois de… ser tirado dos pais e crescer em um abrigo

Eliel Almeida de Jesus foi tirado dos pais junto com os cinco irmãos quando tinha 6 anos. Passou a vida em um lar para crianças. Hoje, paga o próprio aluguel, ajuda os irmãos e atende noivas em um dos salões de beleza mais caros de Brasília

atualizado

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Leonardo Arruda/Metrópoles
Brasília (DF), 21/06/2016 – A vida depois de… passar a vida morando numa ONG. Local: Salão Ricardo Maia, SHIS QL 12 Bloco L. Foto: Leonardo Arruda/Metrópoles
1 de 1 Brasília (DF), 21/06/2016 – A vida depois de… passar a vida morando numa ONG. Local: Salão Ricardo Maia, SHIS QL 12 Bloco L. Foto: Leonardo Arruda/Metrópoles - Foto: Leonardo Arruda/Metrópoles

O cabeleireiro Eliel Almeida de Jesus, 20 anos, anda na estica. Calça encerada, cinto preto, camisa com cotoveleiras camufladas, um tênis de couro preto com branco. E gravata, claro. Fala baixo, pausadamente. Às vezes assume até um tom formal. Um lorde. Quem o vê moldando pacientemente os cabelos de uma modelo no salão Ricardo Maia, no Lago Sul, onde as maiores contas bancárias de Brasília retocam as balayages e fazem as unhas, não imagina a força da sua história de vida.

Eliel passou a vida em um abrigo para menores. Mas favor não confundi-lo com um coitadinho. Descobriu há pouco tempo que nasceu na Bahia, em Correntina, mas deve ter vindo para a capital ainda pequeno, pois não tem nenhuma recordação de lá. “Sei porque li meu prontuário”, diz. Suas memórias mais antigas são da época em que vivia na Fercal com os pais e os irmãos — ele é o segundo filho de seis. Uma escadinha: os irmãos têm 15, 16, 18, 19 e 21.

Não se alonga muito para contar da vida pré-abrigo. “A gente vivia em uma situação muito precária”, resume. O pai, um mecânico, era alcoólatra. Gastava todo o salário da oficina comprando bebida. A mãe vivia à base de remédios controlados e não conseguia trabalhar. Mas compensava com muito carinho pelos os filhos. “Meus cabelos eram compridos até a cintura por causa de uma promessa dela. Meu pai tinha muito ciúmes dessa relação. Quando bebia, batia mesmo”, conta. “Não tinha como viver”, resume.

Vida nova
Quando Eliel tinha 6 para 7 anos se separou dos pais. Um vizinho denunciou ao Conselho Tutelar a condição de vida das crianças e eles foram encaminhados a um abrigo. Passou a maior parte da infância e da adolescência no Núcleo Bandeirante, em uma instituição chamada Nosso Lar.

A entidade existe desde 1971. Tem portões azuis e o nome pintado em colorido no muro branco. Cada casinha lá dentro tem o muro de uma cor. Na época de Eliel, mais de 70 crianças moravam ali. Todas vivendo em condições muito melhores. Hoje, o Nosso Lar abriga cerca de 30 —  a nova legislação não permite que crianças passem mais de dois anos em um abrigo, elas são encaminhadas para adoção ou reintegradas à família.

Desde então não tem mais contato com os pais. Lembra de ter sentido a dor da separação no início, “mas não foi o fim do mundo”. A vida estava mudando. De um jeito meio avesso, para bem melhor.

“Minha mãe nos visitou uma vez, no início. Nunca mais apareceu. Meu pai nunca foi. Quando eu tinha uns 14 anos ele reapareceu, mas eu já tinha outra ideia de família, de ser pai e não quis manter contato com ele. Depois disso nunca mais os vi”, conta sem nem gaguejar.

 

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Tivesse continuado na Fercal, provavelmente o cabeleireiro e os irmãos nunca teriam tido acesso a transporte particular para ir e voltar da escola todos os dias. Nem aulas de informática, squash, natação ou inglês.

Tínhamos uma vida ótima no abrigo, havia horário para almoçar, jantar, estudar, dormir e também muito carinho. Fui muito feliz lá.  Me faltou alguma coisa na infância? Só amor de pai e mãe mesmo. O resto, tive tudo. 

Eliel Almeida de Jesus

Esse amor não é substituível, mas o buraco foi, diga-se de passagem, bem preenchido por amigos, cuidadores e voluntários do abrigo. Muitos deles, fora dali, vivendo vidas completamente opostas ao do Eliel. Os “padrinhos”, a quem ele se refere como “tios” e “tias”, ajudam financeiramente a instituição e as crianças — alguns até hoje são pessoas do seu mais íntimo convívio.

Mais ou menos dois anos depois de chegarem no abrigo, suas duas irmãs caçulas foram adotadas por um casal — os seis entraram em pares no cadastro, para serem acolhidos por famílias, pelo menos, em duplas. Hoje, elas moram com a família nova em Uberlândia (MG).

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Alguns anos depois, as duas irmãs do meio encontraram o mesmo destino. Não tiveram final tão feliz — um ano e meio depois foram devolvidas pela família ao abrigo. 
A oportunidade de adoção veio para ele também. Quando tinha 15 anos, um voluntário da instituição com quem ele convivia desde a infância quis ser seu pai. Eliel topou.

Era um homem rico, certamente lhe daria vida boa e dinheiro para realizar qualquer sonho. Passou a frequentar a casa dele e a alternar os dias e noites no abrigo com alguns no futuro lar. “Eu contei para todo mundo!”. Um dia antes mudança definitiva, tomou o fôlego mais difícil da vida e comunicou ao psicólogo da instituição: não queria ser adotado.

Eu estava descobrindo minha opção sexual na época e o casal era bem rígido. Achei que não me aceitariam. Teria dinheiro para estudar e ajudar meus irmãos, mas não seria feliz. Não me arrependo de ter desistido aos 48 do segundo tempo. Mas talvez de ter machucado uma pessoa de quem eu gostava. 

Eliel Almeida de Jesus

Eliel sequer chegou a falar diretamente com o “ex-futuro” pai sobre a desistência. Ele foi comunicado pela equipe do abrigo. Nunca mais o viu até outro dia, em um evento da sociedade. Estava com um grupo de amigos, e ele também. “Falamos oi e tchau apenas”.

Vida nova, de novo
Aos 16 a vida adulta já batia à porta. A dois anos de sair do abrigo – a idade limite é 18 anos – era tempo de começar a planejar os próximos passos, a próxima casa, o próximo emprego. Na época, trabalhava como Menor Aprendiz em um banco, mas o contrato de dois anos já estava no fim.

Aos finais de semana, fazia alguns bicos de assistente em um ou outro salão de beleza, tarefa que gostava bem mais do que a burocracia do banco. A vocação em “transformar pessoas”, como ele diz, tomava forma.

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Quem abriu a porta para o primeiro passo de Eliel foi uma das suas “tias” da instituição, cliente fiel do salão de Ricardo Maia. Tinha 16 anos quando começou a trabalhar como assistente do cabeleireiro. “Fui aprendendo aos poucos com os profissionais, roubando muito com os olhos”, conta. Aos 18, saiu do abrigo e foi morar com o irmão mais velho em um apartamento.

Dois anos depois, o emprego não apenas paga o aluguel e serve de ajuda de custo às duas irmãs mais novas — que hoje moram com ele no apartamento — como começa a ganhar contornos de carreira. Há poucos meses, inaugurou sua agenda de noivas em um dos salões da cidade com os finais de semana mais disputados (e mais bem pagos). A madrinha que lhe arrumou o trabalho, hoje só se embeleza com o apadrinhado. Outras figuras de sobrenomes conhecidos em Brasília também marcam horário com Eliel vez ou outra.

Mas para quem sonha grande, ainda é pouco. “O sucesso ainda está chegando. Completei uma etapa, mas ainda tem mais”, revela. Eliel quer se especializar ainda mais, crescer, abrir um salão com o próprio nome. “Eu me encontrei na profissão. Tudo o que eu faço, faço com muito amor. E ver as pessoas se transformando e saindo daqui mais felizes me deixa muito feliz”.

Os laços com o abrigo não foram — e talvez nunca sejam — rompidos. Mas hoje o passado tem cara nova. Eliel ainda tem contato com as pessoas queridas que ficaram por lá e atua como voluntário em eventos, como a festa junina anual.  A tranquilidade ao falar sobre os tempos que passou ali deixa claro: o passado é vivido, vencido, jamais esquecido. E o gosto que ele deixou foi até muito bom.

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