A vida depois de… renascer dentro da barriga da mãe
De nome complicado, mielomeningocele é uma má-formação na coluna do bebê que faz com a que medula da criança fique exposta. Quando ouviu o diagnóstico da boca da médica ainda na sala de ultrassom, Thaís perdeu o chão. Dois anos depois, comemora as vitórias de Miguel
atualizado
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O dia em que a estudante de jornalismo Thaís Araújo, 24 anos, descobriu que estava grávida foi o mais feliz da sua vida. Secretamente — “meu marido que não me escute!”, ela brinca — repetia testes de farmácia todos os meses desde que se casou, há cinco anos, mesmo tomando anticoncepcional. “Vai que”, pensava. O marido ainda achava cedo, mas ela mal via a hora de ser mãe, tarefa para a qual jura que nasceu.
A descoberta fez da vida poesia. Nove semanas depois, no exame morfológico que detectaria o sexo do bebê, viu o poema se desfazer ali na sala fria do ultrassom, diante de uma médica igualmente gelada.
“Ela ficou séria de repente, pediu que a gente não se desesperasse, mas que meu bebê tinha uma condição grave e que ela nunca tinha visto bebês com essa doença sobreviverem, a não ser em estado vegetativo. Depois falou que a lei me permitiria fazer um aborto e que minha obstetra explicaria o caso melhor. Só isso”, conta Thaís.
O bebê tinha mielomeningocele, ou “espinha bífida”, uma má-formação que faz com que a criança nasça com a medula exposta. Alguns estudos estimam que um a cada mil bebês tenham a doença, sem muita explicação científica. Atordoada com a notícia, nem conseguia lembrar o nome da patologia quando chegou em casa. Buscou “problema na coluna do bebê” na internet e quase teve um troço. “As fotos eram horríveis, não vi nada bom”, lembra. A consulta com a obstetra era só no dia seguinte. Ela e o marido choraram até dormir – à base de remédios.
A médica confirmou o diagnóstico, a possibilidade do aborto — que Thaís diz que nunca chegou a cogitar, mesmo que o filho desse o primeiro suspiro e morresse nos seus braços — , mas ascendeu uma luz. Disse que havia uma cirurgia fetal feita por poucos médicos no Brasil que poderia salvar a vida do pequeno. O procedimento era caro e arriscado. Consistia em frear o desenvolvimento da doença ainda no útero, antes que o neném estivesse completamente formado. Ela só é feita entre a 25ª e a 27ª semana de gestação. Thaís estava na 18ª.
“Ceú aberto”
Mãe e pai embarcaram para São Paulo sem data para voltar. Em uma única tarde se consultaram com os dois únicos médicos que fazem a cirurgia fetal no Brasil e, com o tempo correndo, se decidiram por um deles, Antônio Moron, professor de medicina na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O médico é pioneiro no Brasil na técnica chamada de “céu aberto”, em que os médicos abrem a barriga da mãe, retiram o útero, expõem a coluna do feto e consertam o “defeito” para que ele continue se desenvolvendo. Considerado experiente na área, o especialista operou pouco mais de 100 crianças desde a estreia do procedimento no país, em 2001.
Nas consultas, os médicos explicaram melhor a doença de Miguel e como ela já tinha afetado sua formação. “Ele tinha os pezinhos tortos, mas talvez isso pudesse ser corrigido quando ele nascesse”, conta Thaís. A mielo pode causar hidrocefalia, fraqueza ou paralisia de membros, insensibilidade em partes do corpo, perda de controle da bexiga e problemas ortopédicos, além de risco de infecção grave, já que os nervos da coluna podem estar expostos no nascimento.
O objetivo da cirurgia é evitar a hidrocefalia, que pode causar comprometimentos cognitivos. De resto, o que não vier “é lucro”. Os pezinhos tortos de Miguel não eram nada perto da sentença de morte que Thaís tinha ouvido da médica semanas antes na sala de ultrassom. Ele não tinha hidrocefalia, mas poderia desenvolver o problema tardiamente, até os 2 anos.
Com 25 semanas de gestação, ela se internava para dar nova vida a Miguel, não sem temer pela própria. A cirurgia a céu aberto traz riscos extras à mãe e à criança por expor o feto e exige uma série de cuidados. Entre eles, repouso absoluto até o fim da gestação, sob risco de os pontos estourarem e a gravidez ser interrompida antes do tempo mínimo para formação.
Morro de medo de qualquer ‘cortezinho’ em mim. Quando me despedi do meu marido e entrei no centro cirúrgico pensei: “Ai, meu Deus, será que vou vê-lo de novo?
Thaís Araújo
Além dos riscos, os custos. Com a cirurgia, foram R$ 100 mil. O parto, feito pela equipe especializada, mais R$ 50 mil. Thaís e o marido entraram na Justiça e conseguiram que o plano de saúde reembolsasse o valor. Ganharam. Mas nem todo mundo tem a mesma sorte ou tempo suficiente para ganhar a briga antes que a breve janela em que a cirurgia deve ser feita se feche.
Como só existem dois médicos habilitados no Brasil, o SUS ainda não faz o procedimento na fase gestacional. Só a cirurgia depois do nascimento, que já não consegue desfazer as sequelas. A tendência, segundo o Ministério da Saúde, é que no futuro ela chegue também à rede gratuita.
Vencidas as quatro horas de cirurgia, ainda não era tempo de comemorar. Os nove meses mais esperados da vida de Thaís foram infinitos. “Não curti a barriga, não curti a gravidez. Estava sozinha, sem minha família, hospedada na casa de outras pessoas e deitada o dia inteiro. Ficava passando o tempo no celular”, conta. Com 35 semanas a bolsa estourou. Miguel queria nascer. O limite para os casos de cirurgia a céu aberto é de 36 semanas. Gestações mais longas podem ser perigosas.
Miguel e Thaís tinham vencido a primeira etapa. Além dos pezinhos tortos, a única coisa que lembrava a mielomeningocele ali na sala de parto era a cicatriz na coluna, souvenir da primeira grande batalha que Miguel ganhou antes até de vir ao mundo. A segunda seria a incubadora. Para Thaís, bem mais cruel que ficar de cama durante toda a gestação foi sair do hospital sem o filho nos braços.
Foram os piores dias da minha vida. Ver meu filho pela incubadora e não poder amamentar. Todos os dias a equipe me dizia que ele teria alta, mas depois vinha o banho de água fria. As pessoas acham que é simples, mas é muito ruim. E olha que foram só dez dias, eu não sei como as mães aguentam meses. Entrei no hospital com barriga, e saí sem a barriga e sem o meu filho.
Thaís Araújo
Ninguém disse que seria fácil
Desobedecendo a equipe médica, que queria Thaís e Miguel em São Paulo por mais um mês, ela pegou as malas e trouxe o bebê para Brasília. Nem na consulta com a obstetra, ou com os médicos, nem depois da cirurgia ou do parto: foi só quando entrou em casa com Miguel que ela conseguiu finalmente respirar desde o dia do diagnóstico da mielomeningocele. As noites de chorinho e as pilhas de fraldas sujas eram as mesmas de qualquer criança saudável. Tudo dentro do esperado.
A vida parecia estar entrando nos trilhos, quando o pediatra de Miguel avisou que os pezinhos não eram a única sequela que a mielo tinha deixado. A doença tinha deixado o pequeno sem controle da bexiga e com uma luxação dos dois lados do quadril que faria da tarefa de andar bem mais difícil que o comum. De novo, o mundo de Thaís caiu.
“Chorei como se eu fosse um neném no consultório do médico. Parecia o dia do diagnóstico de novo”, lembra. “Achei que ele não teria nada. Achei que seria só o pézinho e pronto”, continua. O problema na bexiga faz com que, cinco vezes por dia, Thaís pare o que está fazendo para trocar a sonda de Miguel. “Vai irritando um pouco, sabe?! As pessoas param, perguntam o que ele tem, nem sempre eu tenho paciência”, desabafa.
Às vezes, Thaís tem vontade de desligar o despertador pela manhã e voltar a dormir. Viver um dia apenas que não seja em função de Miguel. Nada que outras excelentes mães mundo afora não sintam vez ou outra. Tudo passa quando ela levanta e vê o sorriso largo no rostinho dele, postado e repostado à exaustão na sua conta no Instagram para lembrar a si própria e a outras mães de mielomeningocele por aí que há, sim, vida após o diagnóstico. E que ela pode ser boa demais.
Hoje, ela conta 18 mil seguidores. Quer ser para as mães e pais que ainda tentam digerir o baque do diagnóstico o que ela não achou no Google quando foi pesquisar sobre a doença: uma espécie de quentinho no coração, de luz no fim do túnel.
Bom diaaaaaa! ???? o fofo beijoqueiro já tá tomando banho.. ??
Uma foto publicada por Thaís Araújo (@thaisporthais) em
É cansativo, não vou mentir. Mas a gente tenta levar da melhor forma. Não mostro isso no Instagram, mas não é que eu fico fingindo. Quero só mostrar o outro lado, que é maior.
Thaís Araújo
Hoje, Miguel tem 2 anos. Já está livre do perigo de desenvolver hidrocefalia. Fala, dá gargalhada por qualquer coisa, manda beijo. Ainda não anda, mas vai um dia, Thaís acredita. As sessões de fisioterapia e hidroterapia duas vezes por semanas são para tentar estabilizar o quadril e dar confiança para que ele consiga colocar um pézinho atrás do outro. Por enquanto, pilota como profissional uma cadeira de rodas, tão pequena quanto ele.
“Aprendi muito, mudei muito desde que ele nasceu. Hoje respeito muito mais as pessoas cadeirantes, por exemplo. Não que eu não respeitasse antes, mas eu aprendi a lutar mais pelos direitos delas”, conta. Uma vez, foi obrigada a voltar para casa, humilhada por querer passar com Miguel, na época ainda sem a cadeira de rodas, em uma fila de exame médico. “Me disseram que se ele era deficiente então que eu voltasse outra hora porque ali não tinha essa história de fila preferencial. Foi muito frustante, voltei chorando para casa”, recorda.
Na próxima gravidez — e vai haver outras, no plural mesmo –, Thaís espera que, se puder mudar alguma coisa, que seja a fase de curtir a barriga, com a paz que não teve na gestação do primogênito. Não tem medo de ter que passar por tudo de novo. Na verdade, passaria mil vezes se precisasse. “Ele é a minha alegria. Realizou meu sonho de ser mãe”, agradece.