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A vida depois de… receber três transplantes de rins

Mariana de Vasconcelos Souza nasceu com hipoplasia renal bilateral, condição em que os rins são subdesenvolvidos. Atualmente, ela aguarda a realização do seu terceiro transplante

atualizado

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Enquanto fala sobre a própria vida, os olhos se iluminam e a boca se rasga em um largo sorriso. Mariana de Vasconcelos Souza, 29 anos, começou a vencer as sentenças de morte que a vida lhe impôs, sucessivas vezes, ainda na barriga da mãe. Tem um histórico médico de fazer qualquer plano de saúde arrepiar os cabelos. Em inúmeras oportunidades, fez a medicina duvidar de que teria as armas necessárias para mantê-la viva. Nada, no entanto, a convenceu a deixar de lutar. Mais do que isso: nenhuma dessas lutas tirou seu sorriso. As batalhas vencidas, Mariana conta às gargalhadas.


A primeira vez que foi desacreditada pela medicina aconteceu aos sete meses de gestação, ainda no útero. A mãe de Mariana, Nicole Vasconcelos, tinha só 17 anos quando ouviu de um médico que sua primeira filha não sobreviveria aqui fora. Uma cirurgia de aborto era necessária e urgente. O motivo: a neném, segundo os exames de imagem, não tinha os rins.

Um segundo especialista confirmou o diagnóstico e estabeleceu uma junta médica para analisar o caso — raríssimo — e planejar a cirurgia. “Não vai precisar disso. Minha filha vai nascer”, avisava a mãe adolescente. Os médicos ficavam incrédulos. “Ela deve estar em negação”, Nicole lembra, rindo. Mas estava certa. Um dos residentes, olhando as imagens do ultrassom, viu que Mariana havia urinado no exame. O timing da menina foi perfeito – ainda que não fossem visíveis ao exame, se Mariana fazia xixi, certamente tinha rins.

Mas o mundo aqui fora não deu chance à recém-nascida. Mal havia se recuperado da primeira luta, a de nascer, outra já a esperava. Com três dias de vida, viajou à São Paulo para se submeter a uma cirurgia de emergência – uma má formação no coração colocava a vida da menina em uma situação delicada. Apesar da viagem ser perigosa demais, mais uma vez, a teimosia da mãe venceu as estatísticas. “Ela não vai morrer”, ela se lembra de dizer aos médicos, com muita certeza. Mariana não só chegou viva à São Paulo, como não precisou da cirurgia. Como mágica, ao chegar à cidade, seu coração passou a bater normalmente.

A conclusão dos especialistas foi de que, por algum motivo, os órgãos da menina estavam se desenvolvendo, aos poucos, do lado de fora do útero. Quando nasceu, Mariana foi diagnosticada com hipoplasia renal bilateral, condição em que os rins são subdesenvolvidos – o que explica por que os médicos não o enxergavam no ultrassom. A exemplo do coração, a expectativa era de que, até os 3 anos, eles crescessem até o tamanho normal.

Enquanto isso, para garantir que a filha sobrevivesse, o pai de Mariana fazia diálises nela em casa, quatro vezes por dia. Pouco antes de completar 3 anos, a família foi avisada de que o tempo havia esgotado. Agora, só um transplante salvaria sua vida.

Arquivo Pessoal
Mariana aos dois anos, quando fazia diálise peritonial em casa


O primeiro anjo

O pai de Mariana era compatível e poderia lhe doar o rim. Para ser apto, o doador precisa ter o mesmo tipo sanguíneo e depois passar por uma série de novos exames de compatibilidade para testar se não tem anticorpos que serão rejeitados pelo transplantado. Mariana e o rim do pai levaram uma vida harmoniosa juntos durante 15 anos.

Na adolescência, aos 17, ela conheceu um rapaz por um programa de chat na internet. Ele tinha 32 anos e morava em Santa Catarina. Um dia, perguntou à Mariana se podia vir passar a Páscoa com ela em Brasília. Decidiu ficar de vez. Quando Mariana tinha 20 anos, o rim do pai começou a falhar e, de novo, ela se viu dependente da hemodiálise, só que dessa vez no hospital.

Saindo da adolescência e entrando na faculdade, não estava nos planos depender de uma máquina para sobreviver. Caiu em uma depressão profunda. Foi a única vez que Mariana se deixou abater.

“Eu só chorava. Meu quarto era meu lugar seguro. A moça que trabalha lá em casa, vendo o meu estado, levou uma pastora para falar comigo. Fiquei me sentindo superestranha, em um daqueles programas de TV. No final, ela disse: ‘Deus pediu para eu te dar um recado. Ele disse para você parar de pedir Ele te levar’. Fiquei chocada. Eu não falava sobre isso com ninguém”, lembra.

O namorado de Mariana, que na época morava com a família, passando um dia pela cozinha ouviu a mãe da menina conversando com alguém sobre como a filha precisaria de um novo transplante para voltar a ter qualidade de vida e vontade de viver. Se voluntariou.

Transplante não se pede. Você não pode chegar para uma pessoa, dizer que está morrendo e pedir para ela doar um órgão para você. Tem que partir das pessoas, elas têm que querer.

Mariana de Vasconcelos Souza
Arquivo Pessoal
Mariana entre os dois doadores: o ex-namorado, à esquerda, e o pai, primeiro doador

 

Com o novo rim, Mariana conseguiu vencer a depressão, terminar a graduação em Relações Internacionais, o curso de inglês e morar nos Estados Unidos, trabalhando na Disney. Depois de se livrar da hemodiálise, chorou ao fazer xixi. “Minha mãe achando que eu estava com dor, por causa da cirurgia, e eu chorando de emoção só por urinar”, ela lembra.

O relacionamento não continuou. Mas um dia, conversando ao telefone com o ex, descobriu que, pela segunda vez, ele sofria de um câncer agressivo. Durante uma viagem a Nova York, descobriu que ele havia morrido, dias antes de uma consulta com um novo especialista.

“Penso muito nele ainda. Para mim, foi um anjo que passou pela minha vida. Ele me salvou”.

Ele se foi em janeiro de 2011. Por algum fenômeno que mãe e filha não conseguem explicar, exatamente um mês depois, o rim que ele havia dado a ela começou a dar sinais de que algo não ia bem. Mariana teve rejeição tardia ao órgão. Ela começou a ter dores e uma reação tão severa ao rim que precisou passar por uma longa e complicada cirurgia para remover o órgão.

Recomeço
Desde então, está de volta à hemodiálise. Agora com a cabeça no lugar, consegue conciliar a rotina de trabalho às sessões de diálise. Como não tem rins, só pode ingerir 400ml de líquido por dia. “A vantagem é que eu não preciso ir em banheiros sujos nas baladas”, ri Mariana.

Não bastasse as batalhas com os transplantes e a perda do ex-namorado, ela enfrentou inúmeras outras adversidades. Em 2012, já sem o último rim, foi para o hospital com dor em uma das pernas. Foi internada para tratar uma trombose. Depois de receber alta, uma dormência e um desmaio no meio da rua a mandaram de volta à UTI, dessa vez para tratar um AVC.

Arquivo Pessoal
Na Disney, depois do segundo transplante de rim

 

Venceu mais esses dois perrengues, para dois meses depois ser pega de surpresa por uma dor de cabeça muito forte quando estava de carona com uns amigos para uma festa. Era um novo AVC.

“Quando acordei, os médicos não acreditavam que eu estava conversando normalmente. Me disseram que o AVC foi no lugar da fala e que se espantaram que eu não precisei de reabilitação”.

Mariana já perdeu as contas de quantas vezes visitou a UTI. Em um único ano, foram oito. Em uma delas, chateada com as sucessivas interrupções da rotina, implorou para a médica para não levá-la ao isolamento. O máximo que conseguiu foi um leito na unidade de pacientes com câncer, que permite um acompanhante. Em outra, em São Paulo, em uma das cirurgias, deu falta do pai que não chegava do hotel. Descobriu que ele havia sido internado com falta de ar no mesmo hospital em que estava. Deixou sua cama e serviu de acompanhante para ele.

Tantos check-ins em hospitais e UTIs a deixaram blindada às más notícias. As boas, na verdade, soam quase como uma brincadeira. “Hoje estivemos no alergista e ele disse que ela não tem alergia a nada! Só acreditei porque vi as credenciais dele e confiei”, riem mãe e filha.

A próxima batalha é passar pela terceira cirurgia de transplante de rim — a de arrumar um novo doador compatível ela já venceu. Vai receber o órgão da mulher que trabalha na sua casa há 14 anos. Se tudo der certo, até o meio do ano que vem, Mariana estará livre da hemodiálise de novo, salva por mais um dos anjos da guarda que a vida lhe deu desde que ela teimou em nascer. Até lá, continuará rindo de orelha a orelha, mesmo quando parecer que não há motivo.

Sabe o que é? A gente pensa que nosso problema é grande, mas poderia sempre ser pior. Ela poderia, por exemplo, ter ficado com sequelas dos AVCs.

Nicole de Vasconcelos

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